Sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

Alequis despertou no susto de uma pressão massiva espremendo seus pulmões. Seu tórax tremeu através das ondas de calafrio, a vibração se misturando ao bater ininterrupto dos seus dentes. Os lençóis da cama estavam molhados. Não, espera, estavam secos, porém tão frios que mais pareciam compressas de gelo.

Que porra era essa?

Ele apertou o cobertor ao seu redor e puxou os joelhos contra o peito. A posição não trouxe calor. Os dedos dos pés e das mãos arderam com uma dormência perturbadora. Alequis os esfregou sob as cobertas na esperança de aquecê-los. A gélida queimação intensificou.

Grunhindo, ele se sentou no colchão. A suave claridade entrando pelos vidros da janela permitiu que visse o vapor condensado de sua respiração espiralar à frente.

Bizarro demais.

Passos ecoaram no corredor. A porta do quarto foi escancarada para dar passagem ao seu pai e um imenso edredom. O velho se aproximou da cama e jogou a carga de tecido grosso em cima de Alequis. Ele teria agradecido caso o rodopio em sua mente desse uma pausa.

— Está nevando lá fora — seu pai disse —, você tem que pôr uma camisa.

As palavras entrecortadas fizeram eco no crânio de Alequis. Uma tosse seca raspou sua garganta em carne viva. Doeu. Os pulmões, o peito, as costas, as pernas, tudo doeu.

Mãos insistentes, um tanto desesperadas, empurraram um número indeterminado de blusas e casacos por sua cabeça. Pares de meias apareceram em seus pés dormentes, uma touca protegeu seus ouvidos daquele zumbido ensurdecedor. As velhas luvas de goleiro, lembrança distante do sonho de ser jogador de futebol, foram deixadas para ele colocar sozinho.

As camadas sobrepostas aplacaram o pior do frio. Ele finalmente parou para olhar a figura do pai, cuja circunferência dobrou de largura pelo excesso de roupas vestidas. Um boné surrado cobria a careca lisa, e o cachecol amarelo enrolado do pescoço ao nariz era... da mãe de Alequis?

Espera, como assim está nevando?!

Antes de ele reunir energia para berrar a pergunta, seu pai se apressou para a porta do quarto.

— Eu vou fazer um chá de gengibre, e você vai tomar chá de gengibre, Alequis Israel.

Alequis aquiesceu, vacilante; então, quando o significado da frase penetrou a bruma em sua mente, gemeu.

— Gengibre não.

Seu pai já havia desaparecido no corredor.

Ele esfregou as luvas no rosto. Nevando? No Rio de Janeiro? Só se o inferno também estiver congelado. Tateou debaixo do travesseiro à procura do celular. A tela informou que eram quatro da manhã e faziam -3 de temperatura.

Como pode? Quando ele deitou o termômetro marcava 23 graus.

Embrulhado no edredom, ele tropeçou para fora da cama. As meias nos pés não o impediram de sentir a picada do chão gelado. Trêmulo, caminhou para a janela. O vidro embaçado tornou impossível distinguir algo além da massa cinza do lado de fora.

Uma luta feroz entre seus braços frouxos e o trinco emperrado se seguiu. Rangendo os dentes, Alequis aplicou mais força, e mais força, e mais força até a portinhola estalar aberta com um ruído estridente.

Maravilha, ele quebrou a porra do vidro. Seu pai o afogaria em litros de chá de gengibre como punição.

Ele catucou o vidro quebrado; o porquê, não saberia dizer. Seu cérebro operou bem abaixo das capacidades, tanto que levou um punhado de segundos antes de perceber o equívoco: aquilo não era vidro, era gelo. A camada grosseira, agora trincada, revestia o exterior da janela.

Olhando para fora, Alequis resfolegou. Um passo afobado para trás embaralhou suas pernas nas pontas do edredom. Caiu sentado, numa bagunça de tecido, membros instáveis e a fumaça de sua respiração descompassada.

A névoa assustadora, cinzenta e espessa como um muro de cimento, esticou tentáculos para o interior do quarto. A parede ao redor da janela reluziu conforme cristais de gelo se espalharam como as raízes de uma árvore.

Assim, do nada.

— Que porra é essa?
— Trinta anos no Rio de Janeiro — seu pai falou, de repente — e eu nunca vi uma coisa dessas.

O grupo de vizinhos e conhecidos reunido próximo a entrada da padaria zumbiu em concordância.

Passava das nove horas da manhã. O nevoeiro intenso continuou a flutuar na altura dos postes de luz, obscurecendo o feriado de sol e calor anunciado pela previsão do tempo. O frio beirou o insuportável, mas a rua não poderia estar mais movimentada.

As crostas de gelo atraíram crianças e adultos, admirados ou chocados. Um concurso de bonecos de neve se desenrolou na pracinha; as criações macilentas, compostas mais de lama que de gelo, dignas de um show de horror. O pastor da igreja da esquina, após fazer uma roda de oração ao ar livre, gravou um vídeo narrando a situação como sinal da volta de Cristo — a seriedade da afirmação posta em cheque quando ele escorregou no meio-fio e deslizou, de bunda, ladeira a baixo.

Pessoas também enxamearam a padaria, fosse para comprar algum produto ou apenas se envolver no grupo de fofoca instalado às portas da loja.

Segundo relatos, a temperatura despencou a partir das duas da madrugada, fenômeno registrado em todo o território da capital carioca. Como e por que eram debatidos à exaustão na internet e na TV.

No Morro do Banco, ceias e churrascos de natal foram interrompidos quando gritos de socorro pipocaram pelas ruas. Sintomas severos de hipotermia acometeram um número considerável de moradores.

Dona Nilza entre eles.

O neto dela se agitou e fungou ao contar como ela ficou pálida e fria; olhos desorientados mal reconhecendo a própria família. Levaram a velha às pressas para o hospital, onde ainda aguardava na fila de atendimento.

A notícia rendeu votos de melhora e oração. Alequis, que não era otimista, muito menos religioso, se afastou para separar seis pães em uma sacola.

Se a velha voltasse, seria por conta da casa.

A meio caminho de preparar mais café na cozinha, ele notou o piscar da tela do seu celular. Uma chamada de vídeo. O rosto sorridente de sua mãe preenchendo o ícone da notificação.

Alequis prendeu a respiração ao encarar o aparelho. A voz de sua consciência — parecida demais com a voz de seu pai para ser confortável — acusou o quão cretino ele estava sendo.

A maldita geada era o assunto do momento. Logicamente, sua mãe soube do ocorrido, do número de pessoas hospitalizadas, dos acidentes ocasionados, da possibilidade dessa merda se estender por vários dias. Ela estaria preocupada, tão preocupada que a chamada tocou por longos minutos até desconectar.

Ele engoliu em seco. A culpa disputou espaço com a justa indignação, o impasse ameaçando rasgar seu peito. Porra, como queria falar com a mãe, para ela o tranquilizar quando o mundo inteiro decidia virar de cabeça para baixo. Porém, se ela realmente se importava, não estaria em outro estado, construindo para si uma nova vida, distante de Alequis e seu pai.

A tela apagou e a consciência dele o golpeou. Alequis enviou uma mensagem no segundo seguinte.

Oi
Filho
Tá tudo bem aí?
Pq não tá atendendo??

Ele mastigou a carne macia do interior da bochecha.

Estou ocupado
Na padaria
Estamos bem


Hesitação o atravessou por um instante antes de acrescentar.

Dona Nilza tá no hospital
Ela passou mal

Ai ai ai

Incrível como ele conseguiu visualizar a mãe, os olhos fechados, a boca apertada em desgosto, a cabeça balançando em negação.

Só jesus na causa
Vou ligar pra filha dela
Vc tomou seu rémedio,
?*
Não precisei

Que bom

O digitando desapareceu da tela. Alequis tamborilou os dedos nas costas do celular. Havia mais a dizer, sem dúvida, porém sua habilidade de encadear palavras em frases significativas diminuía para um quinto da eficiência quando se tratava de sua mãe.

Eu vou atender um povo aqui
Mais tarde a gente se fala

Tá bom
Me liga
Se cuida
Te amo
Tô com sdd

Ah, cara. Sério. Por que tudo tinha que ser tão... foda-se, ele nem sabia o que! A separação dos seus pais era um erro. Um casamento que durou vinte anos poderia durar mais vinte, eles só precisavam... sei lá! Conversar? Fazer terapia? Perceber que a vida se tornou uma merda desde que a família deles acabou? Era horrível, e injusto, e Alequis estava tão cansado.

Ele respirou fundo, e obrigou os músculos tensos em seus ombros a relaxarem. Sua mãe ainda estava online à espera de uma resposta.

Eu também
Alequis arrancou o calendário da parede, bateu a mão sobre a caneta mais próxima e transpassou um risco no dia 25 de dezembro. O pequeno rasgão deixado no papel não era nada perto do que sua fúria consumidora queria fazer.

Dona Nilza morreu.

Claro que ela morreu! Esse era o pior ano de todos os tempos. Quais as chances da velha sobreviver? Aquele papo de abraçar enquanto tinha tempo, de não saber o dia de amanhã? Quanta ironia. Ontem ela atormentou Alequis porque os pães estavam crocantes demais, hoje, seus filhos estavam organizando a vaquinha para pagar o funeral. Qual era o sentido disso?

— Eu vou na casa dela — seu pai falou, encaminhando-se para a caixa registradora. — Estou tirando duzentos reais, anota no livro pra mim. — Ele passou por Alequis e afagou as costas dele num gesto que deveria ser reconfortante. Não foi. — Pode fechar as portas, filho, eu volto daqui a pouco.

Alequis permaneceu parado no mesmo lugar, voltado para a parede, os braços cruzados diante do corpo para conter os tremores — um misto de frio, pico de pressão e a vontade de se acabar em lágrimas.

Ele nem gostava da dona Nilza. Uma barraqueira linguaruda e desbocada. No primeiro mês de Alequis na padaria, ela o xingou de todos os palavrões possíveis só porque ele pediu para manter o distanciamento. A velha até durou muito, considerando os riscos de sua falta de cuidado.

Mas, caralho, ela morreu! De verdade. E nem foi pelo covid-19, foi porque estava de vestido de alças na laje de casa quando o termômetro resolveu despencar vinte graus de uma hora para a outra.

Como pode?!

— Bom dia.

Alequis enrijeceu. Foda-se, foda-se, foda-se.

— Estamos fechando — avisou, e prendeu o calendário de volta na parede.

Ao se virar, encontrou Mata parada atrás da linha gravada no chão. Um avanço. Só faltou ela tomar vergonha na cara e usar uma máscara.

Ela o olhou atentamente, a cabeça meneada no seu típico cacoete.

O silêncio criou raízes.

Alequis suspirou antes de aceitar a derrota na disputa de encarar.

— Vai embora, cara. Não temos mais nada no balcão, está vendo? Hoje é feriado, fechamos mais cedo. Volta amanhã.

Em vez de atender o educado pedido, Mata se pôs a remexer sua ridícula pochete.

Alequis coçou os olhos com as pontas dos dedos; tardiamente, lembrou como o ato era inapropriado. Fazia um tempo desde que higienizou as mãos. Cacete. Avançou para o balcão para pegar o álcool em gel. Mata acompanhou o movimento, aproximando-se com a mão estendida para ele.

Alequis franziu as sobrancelhas para o pequeno objeto preto pousado no centro da palma dela.

— O que é isso?

Mata gesticulou a outra mão, então empurrou a touca e as mechas do seu cabelo para revelar uma das orelhas. Um aparelho auditivo, preto, preencheu a cavidade do ouvido dela.

— Tradutor.

O foco de Alequis saltou de volta para a pecinha na palma dela.

— Tradutor? — pegou o objeto entre o polegar e o indicador. Um material leve e frio, em formato oval. — Como assim?

Mata sorriu, e continuou a indicar a própria orelha. Ela queria que Alequis colocasse aquilo? Bem.

Ele cobriu a coisa de álcool em gel antes de alocá-la no ouvido.

— Ok, e agora? — cruzou os braços.

O sorriso de Mata enlargueceu.

— Pode ouvir minhas palavras em sua língua? — uma voz eletrônica ecoou no aparelho, seguindo o movimento dos lábios de Mata ao falar naquele idioma embolado.

Alequis piscou, surpreso.

— Sim, sim, eu... — tocou o ouvido. — Cara, a sincronia da tradução é perfeita.

Mata se inclinou para frente, a expressão orgulhosa.

— Estive configurando as definições fonéticas da sua língua — o aparelho reproduziu. — Está satisfatório?

A sentença ouvir minhas palavras em sua língua era um tanto esquisita. Um ponto negativo para o tradutor. Ainda assim, era mais do que Mata elaborou sozinha nos últimos dois dias.

— É, dá pra entender legal... — um pensamento lhe atingiu. — Você estava usando isso desde a primeira vez?

— Sim. A comunicação seria difícil de outra forma. Sua língua é complexa, aborrecida de aprender. Preciso de mais tempo para dominar. O tradutor facilita o processo.

Teria sido muito mais fácil se ela tivesse oferecido essa opção a Alequis no primeiro dia. Adivinhar o significado das frases curtas em meio ao sotaque pesado foi responsável por metade da dor de cabeça dele.

Deixaria passar agora, porque... ah, ele não tinha energia disponível para entrar numa discussão.

— Isso é muito legal, muito legal mesmo, mas eu preciso fechar a loja. — Tirou o aparelho e estendeu para ela. — Faz o favor de sair, beleza.

Mata agitou as duas mãos em um gesto que pediu calma. Ela remexeu outra vez na pochete, de onde retirou um masso de notas. Alequis manteve um olhar plano enquanto ela depositou o dinheiro no balcão.

— Mais pesos chilenos?

A expressão de Mata se tornou pensativa.

— Pesos?

Tudo bem, certo, o tradutor dela devia engasgar nessas horas.

Suspirando, ele revirou as notas. Seus olhos esbugalharam no limite das órbitas.

Notas de duzentos reais. Muitas notas de duzentos reais.

— Puta que pariu.

A presença de Mata lançou sombra sobre ele quando ela se achegou mais perto.

— Um habitante local afirmou ser este o dinheiro brasileiro. Ele tinha muito. Peguei bastante. Fique com tudo.

— Caraca, cara, isso é muito dinhe... hã? Como assim você pegou? — ele deu um passo atrás. — Você roubou essa porra?

— Roubar? — ela titubeou. — Qual o seu conceito de roubo?

Caralho.
— Pegar coisas que não são suas sem o devido consentimento do proprietário.

Mata abriu a boca em oh, aquiesceu devagar e então sorriu.

— Sim, roubei.

Alequis também sorriu, um repuxar furioso de lábios que a máscara tratou de encobrir.

Que conveniente. A espertona que configurou a porra de um tradutor instantâneo cometeu um roubo sem saber que era roubo. Com certeza. E ele nasceu ontem.

Alequis retirou o aparelho do ouvido, colocou-o junto às notas e entregou tudo para Mata.

— Pega essa merda e sai da minha padaria.





Compartilhe
Comentários
0

0 comentários:

 
lljj. - COPYRIGHT © 2018 - TODOS OS DIREITOS RESERVADOS.
LAYOUT E PROGRAMAÇÃO HR Criações