Sábado, 26 de dezembro de 2020

Alequis reservou a si o direito ao silêncio. Em todo caso, nenhuma palavra serviria de consolo, então fazia um favor à família de dona Nilza em permanecer quieto, observando de lado seu pai organizar quantas pessoas iriam de carona no seu carro para o cemitério.

Sem velório, a despedida de dona Nilza aconteceria no momento do enterro. Caixão fechado. A presença limitada a um determinado número de pessoas — seu pai sequer sabia se poderia acompanhar o sepultamento.

Os idiotas podiam cacarejar frases de efeito. Ela foi para um lugar melhor, ela descansou, vocês vão se encontrar novamente, Deus sabe o que faz. Fodam-se eles! Ela morreu e sua família e amigos nem teriam tempo para dizer adeus.

— Alequis — seu pai chamou, acenando para ele se aproximar. — Se eu não chegar até as cinco, pode fechar tudo — apontou o polegar para a fachada da padaria.

Alequis concordou, as mãos enfiadas nos bolsos do casaco movendo-se nervosamente.

— Você pegou o vidro de álcool?

Seu pai puxou a embalagem do bolso de trás e balançou diante dele.

— Ótimo. Por favor, não inventa de tirar a máscara no cemitério. E deixa as janelas do carro abertas, o ar precisa circular. O Raimundo estava tossindo que nem um cachorro asmático agorinha mesmo — a última parte saiu sussurrada ao ver Raimundo sentar no banco do passageiro. Tanto tempo na pandemia e o filho da puta ainda usava a máscara embaixo do nariz. — A burrice desse cara é um perigo pra vizinhança.

Seu pai pareceu conter uma risada.

— O maior perigo da vizinhança é você — ele estendeu a mão para apertar o ombro de Alequis. — Pelo amor de Deus, tenta não arrumar confusão enquanto eu estou fora.

Alequis retirou as mãos dos bolsos para cruzar os braços.

— Eu? São os outros que arrumam confusão comigo. Eu fico sempre na minha.

Seu pai concordou com a cabeça, a expressão um tanto conformada.

— Uh-hum, tudo bem então — ele se virou para o carro. — Se cuida.

— Quem tem que se cuidar é você, pai. Volta pra casa encoronado que eu te tranco do lado de fora.

O velho acenou um tchau antes de assumir o banco do motorista. Apesar da gracinha, as janelas do carro foram abertas. Bom. Por hora, estava perdoado.

Nos minutos seguintes, os carros concentrados nos arredores da pracinha se enfileiraram para iniciar o trajeto. O grupo de pessoas dispersas na rua, assistindo com olhos tristes a partida da pequena caravana, era uma amostra do quanto dona Nilza merecia ter um funeral normal, todos os seus amigos e vizinhos presentes para lamentar sua morte.

Alequis respirou fundo, a vaga esperança de o ar frio aliviar os nós em sua garganta. Olhar o céu azul acima de sua cabeça rendeu um nível diferente de frustração.

A névoa do dia anterior desapareceu, restou somente o tempo refrigerado e a lama nojenta no chão como sinais de sua existência. Na ausência de nuvens, o sol da tarde reinou, absoluto; indiferente ao fato de que dona Nilza jamais voltaria para sua meia dúzia de pães amanteigados.

O dia lindo era um dia ruim, e nada fazia sentido.
Dezesseis horas e quarenta e dois minutos. Alequis clicou em outro vídeo de pintura acrílica. Amarelo, vermelho e verde foram jogados na tela. As mãos do artista se agitaram para transformar a bagunça de tintas em um jardim de girassóis, duas crianças perseguindo borboletas ao fundo da paisagem.

Dezesseis e cinquenta e um. Nenhuma mensagem do pai. Alequis soltou o celular e se espreguiçou. Hora de fechar a padaria.

Finalmente.

Ele deu a volta no balcão e caminhou para a entrada. O processo de abaixar as portas de rolar precisava ser rápido, ou algum indivíduo saído do inferno apareceria no último minuto atrás de pão.

Fodam-se as vendas perdidas, Alequis queria subir, tomar um banho e deitar um pouco.

Ele faria isso? Rá, a súbita aparição de Mata na frente da padaria disse não.

— Chegou tarde de novo, vou fechar agora — para confirmar a sentença, apanhou o gancho usado para descer a porta de alumínio.

Mata ergueu uma das mãos para detê-lo. O sorriso automático surgiu no rosto dela ao puxar uma nota da pochete e balançá-la como uma bandeira. O gesto, marcado pela expressão triunfante dela, seria mais significativo caso a nota não fosse de míseros dois reais.

Alequis merecia um longo período de férias desses malucos.

— Isso aí é mais dinheiro roubado?

Mata negou. Começou a falar no seu idioma incompreensível, então se deteve e comprimiu os lábios numa linha apertada. Voltou a mexer na pochete, dessa vez, para pegar o aparelho tradutor.

Ótimo, ela queria conversar.

Ele aceitou o negócio. Talvez assim ela fosse embora mais rápido.

— Achei a cédula no chão, isso também é roubo na sua opinião? — a voz eletrônica traduziu.

Ele estreitou os olhos.

— Você viu quem perdeu?

— Não — ela alisou as dobras da nota, muito tranquila. — Estava caída, ninguém por perto.

Um ponto de interrogação surgiu na mente dele.

— Quando você não está roubando, você está caçando dinheiro perdido na rua? É sério isso, minha filha?

Ela se atreveu a parecer ofendida, a boca projetada em um bico. A qualidade alegre em seus olhos imperturbável.

— Não estou roubando ou caçando dinheiro. — A nota foi balançada com um quê de desprezo. — Estou apenas de passagem. Seu dinheiro é irrelevante para mim a longo prazo.

Alequis a estudou atentamente.

Roupas surradas, porém conservadas. Confere. Pochete inseparável; horrorosa em aparência, embora bastante funcional. Confere. Atitude confiante e relaxada ao se aproximar de pessoas em um país estrangeiro e o total desapego aos bens materiais. Confere e confere.

As teorias de Alequis estiveram certas desde o início.

Mata era uma mochileira low cost. Claro!

Provavelmente ela usou o Couchsurfing para se hospedar na casa de um morador. Suas viagens deviam ser a base de medicança e ocasional furto de carteira.

Bem, restava outra dúvida.

— De onde você vem?

A pergunta trouxe uma ruga para a testa dela. Um polegar erguido por cima do ombro indicou a rua deserta às suas costas.

Alequis revirou os olhos. Um puta tradutor na conversa, e Mata ainda entendeu a frase errada.

Gringos.

— Eu quero saber de qual país, pa-ís, você vem — explicou.

Compreensão iluminou a face dela.

— Não venho de um país, venho de uma nação, os — uma cacofonia de chiados estourou no tradutor.

Alequis se encolheu, e ergueu uma das mãos para dar leves batidas no fone de ouvido.

— Espera, o negócio não traduziu direito, repete aí.

Ela repetiu a frase completa, o final se perdeu em chiados outra vez.

Ele comentou a falha. O rosto de Mata ganhou uma qualidade pensativa.

— O sistema precisa de novas atualizações. Como é a performance da tradução para o seu idioma?

— Muito boa — ele tirou alguns segundos para considerar. — Sabe, parece mais natural agora do que estava ontem. Menos robótica, sei lá.

Mata se animou, os olhos brilhantes e satisfeitos.

— Fiz algumas modificações após te encontrar. A tradução para o meu idioma se tornou mais orgânica também.

— E qual é o seu idioma nativo?

Outro amontoado de chiados seguiu a resposta dela. Alequis deixou passar.

— Tudo bem, você já me fez perder bastante tempo — suspirou, vencido. — Dois reais não paga nenhum salgado; nem adianta insistir. Já o pão francês... — fitou a cesta na lateral da bancada. — Olha, está frio e meio murcho. Posso fazer oito por dois — virou-se para Mata novamente. Um aceno entusiasmado foi a resposta. — Certo.

Ele deixou o gancho de lado e se encaminhou para o balcão. Mata o seguiu, mas parou atrás da linha de distanciamento. Um hábito se firmou, por sorte.

Alequis colocou os pães numa sacola, e aproveitou para conferir o celular.

Dezessete e seis. Uma mensagem do pai avisando ter acabado de sair do cemitério, o sepultamento atrasou. Uma pontada aguda varou o peito de Alequis.

Dona Nilza estava enterrada. Que ideia estranha de conceber...

Ah, porra, ele precisava deitar um pouco.

Um ok enviado para o pai, e Alequis entregou os pães para Mata.

Antes da sacola deixar completamente as mãos dele, Mata abocanhou o primeiro pão.

— Há quanto tempo você não come? — ele indagou, diante da ferocidade com que ela mastigou a massa em seco.

Ela grunhiu, a boca cheia pelo segundo pão da fila.

— Como o tempo todo — uma mordida no terceiro. — Comida é energia e preciso do máximo. — Outra mordida; fim da linha para o pobre pãozinho. — Sua comida é boa, gosto da consistência. Lembra um pouco a comida da minha nação. — O quarto pão entrou para o abate.

— É por isso que você fica voltando? — ele saiu do balcão. — Sente falta da sua terra?

Mata soltou um ruído agudo, o meio termo entre uma risada e um gemido.

— Odeio a minha nação — a mordida no quinto pão carregou uma dose extra de brutalidade. — Mas a comida é saborosa, muito melhor que barras proteicas.

De repente, ela enfiou uma das mãos na pochete e revirou o interior dela. Após uma quantidade considerável de busca — porra, qual o tamanho do espaço interno dessa coisa? —, a mão de Mata emergiu segurando aquele lustroso estojo de couro.

Alequis lembrou muito bem o que havia dentro dele.

— Essa é a única lembrança que mantenho da minha nação — ela afirmou.

Em vez de enxotá-la e fechar logo a padaria, Alequis se pegou cruzando os braços para questionar:

— Uma faca velha?

Mata sorriu através da mastigação do último pão.

— Uma arma — ela abriu o estojo, a faca surgiu para a luz em toda sua triste decadência. — Uma arma lendária, empunhada por guerreiros memoráveis em batalhas históricas. Responsável pela morte de reis e imperadores. Viu centenas de nações ruírem e outras tantas se erguerem.

A voz automatizada do tradutor tornou o discurso noventa por cento menos imponente — e admissível.

— Sério? — ele chegou mais perto para analisar. Quanta imaginação precisaria ter para ver algo além de lixo ali? — Se é tão importante assim, por que você ia trocar ela por comida?

Mata piscou como se tivesse esquecido do acontecimento, depois, encolheu os ombros.

— Já não é mais a mesma — retirou a faca do compartimento e a manuseou, displicente. — Antes, o cabo era lustroso e firme. A lâmina tão afiada que cortava só de olhar. Agora está assim, apodrecida. Não tenho razão para manter uma arma moribunda.

Caralho, a mulher estava fora da casinha.

Um tanto divertido, Alequis estendeu a mão para a faca. Mata a entregou de prontidão. Seu apresso pela “arma lendária” era questionável.

A coisa era mais pesada do que aparentava. A lâmina, corroída em ferrugem e lascada nas bordas, estava frouxa devido a profunda rachadura no cabo, que era feito de um material desconhecido, coberto de mofo.

Por um lado, era uma porcaria inútil; por outro lado, também.

— Quer ficar com ela? — Mata perguntou.

Alequis bufou, raspando a unha na ferrugem.

— E fazer o que? Não serve nem pra cortar pão.

— Mostre sua mão, por favor.

Alequis ofereceu a palma direita, talvez a história de arma lendária viesse acompanhada de uma história de quiromancia. Mata bem que tinha jeito de feiticeira.

Ela segurou o pulso dele, os dedos compridos fecharam a volta completa. A distância entre seus corpos permaneceu em dois passos, o que limitou o desconforto de Alequis com a proximidade. Em todo caso, ele estava de máscara, as mãos ainda úmidas pelo álcool que passou antes de sair do balcão.

— Entregue a faca.

Ele entregou. Um palpitar de coração depois, se perguntou POR QUE CARALHOS EU FIZ ISSO?!

Mata cortou a palma dele.

Ela cortou a palma dele!

Alequis sequer teve tempo para reagir antes da lâmina enferrujada rasgar uma trilha tortuosa de fora a fora. Sangue borbulhou do ferimento junto ao seu grito estridente.

— Filha da puta?! — ele se debateu, puxando o braço. — Você é doida! Me larga!

O aperto de Mata era ferro sobre seu pulso. Imperturbável, ela abriu um talho no próprio antebraço e, na exibição mais macabra que Alequis já testemunhou, misturou o sangue dos dois pela lâmina da faca.

— Mata, me solta, me solta, porra, me solta!

Ignorando-o, ela pôs o cabo na mão dele e o forçou a fechar os dedos. Palavras guturais foram proferidas e traduzidas, porém Alequis não conseguiu prestar atenção em meio ao pavor.

O sangue, seu sangue, escorreu e gotejou. Dor floresceu a partir do corte, correu um caminho de fogo pelo braço até se espalhar nos ombros e ressoar em cada grama do seu corpo. Seus movimentos ficaram lentos. A cabeça pesada, atordoada, vergou para frente.

— Que... porra...?

Algo o puxou por dentro, enredando em seus órgãos e os espremendo ao ponto de ruptura. As vistas de Alequis escureceram e o mundo se aquietou.

Então passou.

Ele voltou a si agitado, como se acabasse de despencar de um prédio de vinte andares em sonho. Encontrou-se sentado no chão da padaria, as costas apoiadas no balcão. Na mão direita, a faca encharcada de sangue queimou como brasa.

Agachada à sua frente, Mata sorriu como a louca perturbada que era.

— Você! — ele trovejou, o fôlego renovado.

Levantou-se de supetão. Tonteou. Agarrou o balcão para não cair. Mata tentou segurá-lo, ele a empurrou para longe, uma saraivada de palavrões a acompanhar o gesto.

Que brincadeira doente era essa? Cortar uma pessoa a troco de nada?! E com uma merda coberta de ferrugem, ainda por cima! O mal-estar com certeza era o tétano infectando seu sistema nervoso. Desgraçada!

— Sai agora da porra da minha padaria!

A ordem gritada a plenos pulmões não perturbou a placidez das feições de Mata. Ao contrário, o sorriso de lado cresceu no canto da boca dela.

— Pertence a você agora — o tradutor informou enquanto ela apontava para a faca presa entre os dedos dele. Em seguida, virou as costas e partiu rumo a saída.

Alequis proferiu maldições, ainda mais irado.





Compartilhe
Comentários
0

0 comentários:

 
lljj. - COPYRIGHT © 2018 - TODOS OS DIREITOS RESERVADOS.
LAYOUT E PROGRAMAÇÃO HR Criações