Terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Alequis olhou para o teto, os dois braços cruzados atrás da cabeça. Os pés balançaram na borda do colchão, um ritmo leve e constante para queimar a energia nervosa presente abaixo de sua pele.

A luz não voltou. O celular descarregado estava largado na lateral da cama. O céu nublado lá fora reduziu a claridade do entardecer, as horas escuras da noite pareciam muito mais perto do que realmente estavam.

Seu pai assumiu o balcão da padaria depois do almoço, mais para fofocar com os vizinhos do que realizar alguma venda.

A toa, Alequis não podia fazer mais do que se deixar consumir por pensamentos.

Havia algo errado. Com o mundo, com ele, com a faca repousada em seu peito.

E, de alguma forma, era culpa de Mata.

Quarta-feira passada, menos de uma semana atrás, ela apareceu de repente. Desde então, tudo o que estava ruim, ficou ainda pior.

Os desastres naturais que explodiram pelo globo coincidiam com a aparição dela. Um tsunami no Chile no mesmo dia em que Mata surgiu com pesos chilenos era simples coincidência? Porra, isso era estranho. Assim como as atitudes dela. Um mochileiro não conseguiria ir muito longe se não soubesse ao menos reconhecer o dinheiro do país em que circula.

Uma lunática ensandecida também não seria uma grande viajante, certo? Mata nunca pareceu alguém em estado de vulnerabilidade ou dissociação. Apesar das considerações do velho, Alequis viu Mata como alguém consciente dos seus atos, sob controle até nos atos mais deliberados.

Chamá-la de louca era um equívoco. A desgraçada sabia o que estava fazendo.

O fone tradutor era uma prova disso.

Alequis tirou o aparelho do bolso da bermuda e analisou o objeto. Mata falou em configurar o sistema de tradução. Ele pensou em algum tipo de aplicativo na época, o interesse mais focado no que aquilo podia fazer do que no como fazia.

Tradução automática não era novidade. O Google Translate estava aí para provar. Agora, qual era a porra do idioma de Mata que precisava de... qual o termo que ela usou? Definições fonéticas? O que caralhos era isso?

E, claro, ainda tinha a faca.

Ele segurou o objeto na outra mão e se sentou de pernas cruzadas.

Pela milésima vez, alisou o polegar na ponta da lâmina. Uma gotícula de sangue brotou para manchar o metal. O calor do material aumentou em resposta, vibrando pelas terminações nervosas de Alequis.

A sensação era real ou ele estava alucinando?

Você e a arma compartilham o mesmo fôlego.

Que merda isso significava? A faca não fazia nada!

O design era muito mais decorativo que letal. A lâmina era afiada, ok. Alequis experimentou cortar algumas coisas com ela no dia anterior. A eficiência andou no mesmo patamar das facas de churrasco do seu pai. Conversar também não serviu de nada — fora fazê-lo se sentir um idiota. O único ponto atípico era a sensação.

Alequis sentia a faca. Separar-se dela o deixou tenso, como se uma parte do seu corpo estivesse ausente. O vazio cresceu e arranhou as paredes do seu interior e ele correria para ela antes de se dar conta do que estava fazendo. Pegá-la nas mãos era como finalmente respirar após passar horas prendendo o fôlego.

E havia o impulso irresistível de sangue. O polegar dele deveria ter um buraco após todas as vezes que o cortou. Nem mesmo quando o corte era fundo, um fio grosso de sangue escorrendo pelo metal, o preocupava. O ferimento desaparecia nos minutos seguintes, de qualquer forma.

— Você está acelerando a minha cura? — indagou para o seu reflexo na lâmina.

Nenhuma resposta. Um suspiro resignado.

Alequis voltou a deitar, olhos no teto, a faca sobre o peito.

Ele precisava encontrar Mata. Foda-se, ela ainda tinha centenas de perguntas para responder. O problema era que a mandou sair e não voltar.

Na tarde de ontem e hoje, ela não voltou.

Será que foi embora de vez? Para o seu planeta de absurdos?

Porra, ele devia esquecer essa história. Tantos assuntos com as quais se preocupar, assuntos reais. Não tinha disposição ou tempo para essas louc...

— Bom dia.

Alequis saltou sentado, o susto grande demais para permiti-lo gritar ao ver Mata empoleirada no batente da janela.

— Que porra! — ele se levantou, atrapalhado. — Como... quando... por que você está aqui?!

Mata sorriu, e gesticulou em direção ao próprio ouvido. Alequis se apressou em pegar e colocar o fone tradutor.

— Preciso de sua ajuda — ela disse, tranquila.

— Não, espera. Primeiro me diz como você subiu aqui.

O rosto dela contraiu em confusão.

— Com as pernas — indicou os membros como se Alequis não pudesse vê-los.

Ele se obrigou a respirar fundo.

— Você escalou a porra da minha casa?

— Escalar? Não, não. Apenas caminhei. — Ela se pôs de pé e deu três passos a frente numa demonstração. — Viu?

Oh, Alequis viu, sim.

Primeiro, reparou, surpreso, que ela trocou de roupa. Usava um macacão comprido e frouxo, do mais profundo tom de vinho. A mudança foi chocante o bastante para ele levar um par de segundos antes de se dar conta que Mata caminhou no ar, há uns bons trinta centímetros do chão.

— Você está voando.

Mata encarou os próprios pés.

— Para voar preciso de asas. Isso aqui — deu outros passos no nada — é caminhar.

Alequis oscilou pelo quarto até sentar pesadamente na quina da cama.

— Como você faz isso? — sussurrou, temendo que um tom mais alto estourasse a bolha no qual seu nervosismo abismado estava contido.

As linhas na expressão de Mata falaram sobre uma frustração crescente.

— Com as pernas. Pode me ajudar? Estou sem tempo.

O cérebro de Alequis seguiu entorpecido, mal registrou o aceno afirmativo de sua cabeça.

— Ótimo — Mata sorriu outra vez. — Por favor, enfie a arma no seu peito.

Um estalo, e ele voltou a operar com força total.

— Como assim? Enfiar quer dizer me esfaquear? Meter a faca no meu peito? Ficou doida?! Claro que não.

Ela se aproximou ainda mais.

— Está tudo bem — agachou diante dele, um sorriso encorajador nos lábios. — A arma seria incapaz de matar o portador.

— Foda-se, eu não vou enfiar ela no meu peito. E você pode fazer o favor de andar no chão?

O sorriso dela perdeu a maciez, porém seus pés encontraram o piso como solicitado.

— Compreenda, a arma precisa estar em você para despertar seu potencial. O centro do tórax é o lugar perfeito. Tudo o que precisa fazer é colocá-la aí dentro.

A respiração de Alequis acelerou.

— Mata, sério, você soa muito maluca falando essas coisas.

O maxilar dela tensionou. Ela estava irritada? Ah, espera, ela sorriu de novo.

— Venha comigo, quero mostrar uma coisa.
Eles desceram para o primeiro andar. Andando no chão como pessoas normais, obrigado. O pai de Alequis soltou uma exclamação ao ver Mata ao lado dele.

Alequis não tentou explicar aquilo. Não havia explicação para o súbito surgimento de Mata no seu quarto. Ele apenas avisou que estava saindo antes de seguir os passos dela pela rua.

Em direção a uma das trilhas da floresta.

Alequis se deteve na calçada, o limiar entre a rua de asfalto da comunidade e o caminho de terra e pedras da mata.

— Vai fazer o que aí?

Mata virou para ele, um polegar indicando a trilha entre as árvores.

— Meu módulo está no meio da vegetação. Sua nação é curiosa, sempre mexia na — ruídos estáticos — quando colocava mais próximo.

— Essa frase parece mais um motivo para ficar do que para ir com você — ele ponderou.

Ela apoiou uma das mãos na cintura.

— Não há vantagens para mim em prejudicar você. Acredite, o lugar mais seguro deste planeta é ao meu lado.

Pela primeira vez, Alequis sentiu real sinceridade da parte dela. O problema era: do que ele deveria se sentir seguro?

Apalpando a firmeza da faca sob sua blusa, ele avançou para a trilha.

Seja o que Deus quiser, seu pai diria.

Andar na mata trouxe um sentimento nostálgico. Ele percorreu sua cota de quilômetros destes caminhos na infância, quando cruzar os atalhos escondidos na floresta era a maior aventura do mundo.

Os ganidos e barulhos de um bando de macacos ecoou ao redor. Mata sorriu na direção deles. Alequis, lembrando de uma ou outra vez em que os macacos lhe atiraram pedras e bosta, andou mais rápido pela trilha rasteira.

Era esquisito ver Mata, uma estrangeira, andar por ali com mais naturalidade do que ele mesmo.

— Há quanto tempo você está aqui?

Ela o olhou por cima do ombro.

— No planeta?

Ele tropeçou em uma pedra, xingou um palavrão imundo, depois voltou a caminhar.

— É, no planeta — foda-se, já havia entrado na mata, por que não entrar na história?

Os ombros dela balançaram.

— Diria que vinte amanheceres, porém posso não ser precisa na contagem.

Alequis esquivou de um bicho que passou zumbindo por seu ouvido.

— Como assim?

— A forma como sua nação calcula a passagem do tempo é confusa. — Ela saiu da trilha de terra batida e se embrenhou na mata fechada. — A rotação deste planeta também é muito rápida. Meu sistema interno não conseguiu se adaptar.

Alequis titubeou por um segundo antes de segui-la. A baixa claridade do dia tornou os contornos das árvores sombrios demais para o seu gosto.

— O seu planeta é diferente? — indagou, em parte para distrair a mente do fio de medo que insistia em riscar sua determinação.

Mata saltou por cima de um tronco caído.

— Meu planeta não gira ao redor de si.

Alequis franziu as sobrancelhas, para a declaração e para o fato de ter que passar por baixo do tronco. Ficaria cheio de terra.

Assim como as botas de Mata.

— Há quanto tempo você está aqui? — questionou alto, abaixando-se sob o tronco. — No Morro do Banco?

Mata respondeu no momento em que ele despontou do outro lado.

Alequis não registrou a resposta.

O descampado à sua frente roubou sua atenção. As árvores caídas, retorcidas e quebradas, formavam um ninho no qual repousava a coisa mais estranha que ele já viu na vida.

Tinha o tamanho de uma van de passageiros; um formato cilíndrico com a ponta bicuda, semelhante a um projétil de arma. A superfície era escura e espelhada; pelo reflexo, Alequis viu sua boca se abrir em perplexidade.

— Isso é uma espaçonave!

Mata se aproximou da lateral da coisa e apertou algum botão que fez surgir uma fenda para o interior.

— Espaçonave?

Ele a ignorou, sua cabeça disparando para um milhão de direções distintas.

— Mata, você veio de outro planeta mesmo? Porra! Que loucura. É verdade?

Ela não o agraciou com uma resposta, apenas atravessou a porta aberta.

Alequis a seguiu com passos hesitantes. O cheiro forte de esmalte o envolveu, como se uma manicure operasse a todo vapor ali dentro. Fora isso, o resto do cenário era decepcionantemente comum.

Um ônibus rodoviário, daqueles semi-leito, se equipararia em questão de espaço e funcionalidade. Nos fundos, compartimentos grandes lembravam guarda-roupas. Na frente, haviam quatro poltronas forradas com uma substância gelatinosa que Alequis não resistiu em cutucar. A coisa mais alienígena era o largo painel de controle, onde luzes piscavam.

Mata teclou alguns botões e uma tela se projetou no ar diante deles. Uma esfera rodopiante flutuou enquanto inúmeros pontos azulados piscavam nela.

— Este é o seu planeta — Mata ergueu a mão para apontar as bolinhas piscantes. — E esses são os próximos pontos de convergência.

Alequis sentou na poltrona ao lado dela, as pernas bambas demais para se sustentar.

— Como você chegou aqui?

Mata se escorou em seu assento.

— Meu navegador me trouxe aqui. — Novos comandos invocaram imagens indistinguíveis na tela suspensa. — Esse é o único planeta habitável nesta parte do sistema. O próximo está a mais de 10 triângulos de distância. Nunca estive nesse lado do universo antes.

Alequis olhou sem entender.

— Isso é tão louco — esfregou a testa suada. Também era quente ali dentro. — Como você caiu aqui sem ninguém saber?

A pergunta pareceu ofendê-la,

— Não cai. Meu pouso foi suave, apesar das coordenadas não serem precisas sobre o local de aterrizagem. Acredito que deveria ter pousado no alto do monólito. Um desvio de trinta polegadas e acabei aqui. Os dados são bem antigos.

— Monólito? Está falando da Pedra da Gávea?

— Sim, o código está carcomido pela erosão, mas ainda serve para a navegação básica.

— O que?

Mata teclou e Alequis reconheceu a foto da Pedra da Gávea na tela.

— Os traços aqui — ela indicou as inscrições na lateral do rosto esculpido — são um código de localização instrucional. Serve para triangular rotas para saltos.

Alequis piscou, incapaz de afastar a cara de otário que devia ter ocupado seu rosto.

— Código alienígena... a Pedra da Gávea tem um código alienígena... Foi o seu povo que pôs isso ali?

— Sim. Tempos no passado minha nação criou um projeto de exploração territorial. Diversos sistemas e planetas foram descobertos. A maioria com pouca ou nenhuma forma de vida desenvolvida. As inscrições eram uma ancoragem para os navegadores. Se tornaram obsoletas com o avanço tecnológico. Mas eu devo agradecer a qualquer antepassado que deixou essa aqui.

— E por que eles desenharam um rosto na pedra?

Mata franziu a testa e negou com a cabeça.

— A face é natural. O que explica a escolha para o local da inscrição. Uma cabeça gigante é um ótimo ponto de referência.

Antes que pudesse perceber, Alequis estava rindo. Talvez mais histérico que divertido, ainda assim, uma risada. Mata apoiou o cotovelo no painel e repousou o queixo na mão para encará-lo.

— Você acredita em mim agora?

Ele respirou fundo para se acalmar.

— Sim, mas eu ainda sinto que posso estar numa pegadinha muito elaborada do Silvio Santos.

— Não faço ideia do que isso signifique — ela informou, então olhou além do vidro fosco que permitia a visão do lado de fora. — Poderia colocar a faca em seu peito agora?

— Calma lá, calma lá, eu não vou me empalar só porque você me mostrou sua nave.

Mata voltou a fitá-lo, a expressão desanimada.

— Reconsidere sua decisão, por favor.

Ele negou com a cabeça.

— Sem chance.

Mata suspirou.

— Pena. Os emissários acabaram de chegar — lançou o mesmo olhar plano para o lado de fora. — Estão se preparando para atacar o módulo.

Alequis disparou olhos ansiosos para as árvores à frente.

— Está de brincadeira?! Por que me trouxe aqui se eles iriam te atacar?

Ela lançou a ele aquele típico sorriso divertido.

— Vai ficar tudo bem, posso cuidar deles. — Então inclinou o rosto para o lado. — Mas seria mais fácil se você ativasse a habilidade da arma.

Alequis se encolheu diante da informação exposta nas entrelinhas.

— Você me trouxe aqui para me coagir, sua filha da puta?

— Não, não. Nada será feito a você. Pode tomar o caminho que fizemos até aqui e partir. Apenas penso que você poderia mudar de ideia. Não?

— Não!

Ela então se ergueu e caminhou com tranquilidade pelo veículo. Alequis se apressou atrás dela. Pararam na fenda de entrada. Mata retirou um par de luvas da sua pochete. Ambas tinham saliências metálicas na parte externa dos dedos, formando uma espécie de soco inglês.

— Quando eu der o sinal, corra para a trilha.

Um barulho de madeira sendo pisada ecoou lá fora. Suor frio deslizou pela testa de Alequis.

— E você?

Em vez de responder, Mata riu. Um som cavernoso e cruel que tornou Alequis indeciso se o que estava lá fora era realmente mais perigoso do que o que estava ali dentro.

Ela saiu da nave e no mesmo instante uma saraivada de disparos ecoou. Alequis se encolheu ao lado da porta aberta, as mãos tapando os ouvidos. Escutou gritos naquela língua embolada da mulher. O tradutor chiou e chiou sob os ruídos externos. O som de coisas quebrando e se partindo tomou o ar.

— Alequis! — Mata gritou e por longos segundos ele não conseguiu fazer nada além de tremer como uma vara.

Alguma coisa se chocou na lateral da nave numa violência que o desequilibrou. Foi a motivação perfeita para zarpar pela porta e cruzar o descapando aos tropeções. Novos tiros soaram e ele arriscou um olhar por cima do ombro.

No espaço de um microssegundo, viu Mata cercada por um número indeterminado de figuras pretas. Algumas delas estavam caídas no chão enquanto as restantes avançavam para a mulher no centro.

Um trovão estalou no céu e Alequis escorregou em uma pedra.

Ele não viu mais nada da luta.

Concentrado em correr, mal registrou a chuva molhar o seu corpo. Raios iluminaram o céu escuro e trovões fizeram seus tímpanos doerem. Quando saltou para a área urbana da comunidade, a água descia tão forte pelas ladeiras que por pouco o carregou. Caminhar pela calçada mais pareceu cruzar uma cachoeira.

Ao virar a esquina para a pracinha, ele viu um grupo de pessoas se amontoar na marquise da padaria.

— Alequis! — o grito de seu pai superou o estrondo de um trovão. — Alequis!

— Pai — ele respondeu e os vizinhos sob a marquise alertaram o velho de sua aproximação.

Molhado, trêmulo e com a bunda doendo da última queda, Alequis adentrou a loja. Recebeu um olhar do pai que prometeu broncas e abraços ao mesmo tempo.

Nos minutos seguintes, todos ficaram em silêncios horrorizados enquanto a chuva lavava tudo o que via na frente. Quando parou, foi abrupto, como se sequer houvesse existido.

As consequências, porém, não desapareceram.

O cenário era apocalíptico.



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