Segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

A quietude do ambiente pinicou nos ouvidos de Alequis. Ele franziu o cenho para a escuridão no qual o quarto mergulhou. O barulho e agitação da rua eram suas inconvenientes companhias ao se jogar sobre a cama. Um fechar de olhos para descansar as vistas, e os ruídos — e, provavelmente, as horas — se foram sem serem sentidos.

A contração das sobrancelhas dele aprofundou. Sono pesado e ininterrupto era um conceito estranho demais quando aplicado a sua vida.

Sua mão tateou o colchão em busca do celular. Ele tinha a vaga sensação que era madrugada. Queria conferir para ter certeza, mas a tela do aparelho se recusou a acender. A bateria zerou. Ótimo, tinha que pôr a porcaria para carreg... Ah, sim, estavam sem luz.

A vela deixada sobre a cabeceira da cama foi reduzida a um amontoado disforme de cera. A escuridão densa ao seu redor era suavizada apenas nas bordas da janela aberta, por onde a tênue claridade do céu limpo entrou.

Alequis se ergueu para uma posição sentada, as juntas do corpo estalando como engrenagens velhas. Puta que pariu, uma surra a base de pauladas não o deixaria tão dolorido quanto estava.

Um terremoto deixaria.

E, certo, ele enfrentou a porra de um terremoto.

Qual seria o próximo desastre natural? Gelo e terra já foram. Um furacão para o ar? Um tsunami para a água? Talvez o Morro do Banco fosse um vulcão adormecido. Uma erupção repentina, e o item fogo estaria riscado.

Porra, como doí, ele segurou a barriga, se encolhendo. O foco da dor não era ali, era... em algum lugar, no corpo dele. E não era realmente dor, era... um incômodo. Um incômodo potente para fazê-lo se contorcer no lugar.

Lambeu a boca seca, os lábios ásperos de tão rachados. Queria água. E comida. E, cacete, ele jantou ontem à noite? Seu estômago apertou ao redor do vazio, uma necessidade palpável que exigiu ser atendida. Comida? Tudo bem, ele prepararia alguma coisa.

Gemendo, se colocou de pé. Caminhou para o outro lado do quarto e pegou o banquinho de plástico. Equilibrou-se em cima dele, na ponta dos dedos, para puxar a caixa de sapato de cima do guarda-roupa.

A dor que não era dor deu outro sinal de vida. Alequis respirou fundo para aliviá-la.

A caixa estava em suas mãos.

A caixa estava em suas mãos?

Um arquejo assustado, e ele empurrou a caixa para longe de si. Saltou do banquinho e tropeçou até bater as costas contra a parede.

Por que pegou aquela merda?! Ele não queria pegar aquela merda!

Caralho, a dor, ele se dobrou ao meio, as mãos apoiadas nos joelhos. O estômago apertou novamente, o vazio expandiu para devorá-lo de dentro para fora.

Ele encarou a caixa caída. Um receio equivalente ao vazio o atingiu. Devagar, se aproximou e sentou no chão diante da coisa. Sério, ele era um idiota, não? Tudo o que havia ali era a porcaria da faca, podia jogá-la na primeira caçamba de lixo da rua. Sem problemas, não precisava tremer de medo, muito menos...

Alequis abriu a caixa.

A calmaria que o invadiu era perturbadora por si só.

A baixa luminosidade atrapalhou sua visão, consequentemente, seu discernimento. Isso ou o cérebro dele entregou os pontos e mergulhou de vez nas profundezas da insanidade. Uma alucinação induzida por estresse era mais crível do que a realidade sem sentido na qual a faca enferrujada se tornou aquilo.

Os dedos dele tocaram o cabo esmaltado, pálido e duro como um dente. Nenhum risco, nenhuma mácula. A lâmina prateada refletiu a pouca luz com um brilho fosco, livre de qualquer rastros de ferrugem. A ponta, tão fina quanto uma agulha, atraiu o polegar de Alequis. Uma pressão leve fez o sangue escorrer pelo metal aquecido.

A faca palpitou as batidas de um coração.

O vazio sumiu.

Alequis enlouqueceu.

Uma risada rouca escapou por entre seus lábios. A faca carcomida renasceu da própria ferrugem e mofo. Ok, era 2020, aconteceram fenômenos bem mais estranhos. Agora, sentir como se aquilo estivesse vivo, chamando por ele? As definições de bizarrice foram atualizadas.

Alequis testou um movimento rápido no ar, o tinido metálico da lâmina arrepiou seus cabelos. Repetiu. O som era bom, assim com a firmeza sólida em sua palma. E o calor, semelhante ao emanado por uma pessoa, era reconfortante.

Ele se inclinou para trás, deitou de costas no chão frio e embalou a faca sobre o peito. Sua respiração seguiu um compassado profundo, tranquilo como há tempos não se sentia.

A merda que Mata fez... que porra foi aquilo? Ela disse que a faca, não, a arma estava moribunda. Ela cortou Alequis, depois cortou a si mesma, então misturou seus sangues. Um tipo de ritual satânico?

Ele retirou o curativo da mão direita para inspecionar. O corte era um risco grosseiro, inchado pela concentração de tecido cicatricial. Flexionar os dedos, enrolar o punho, catucar a carne lesionada; nada doeu. O corte recente no polegar, que criou um pequeno fluxo de sangue, também sequer era sentido.

Intrigado, Alequis se sentou e ergueu as barras da bermuda. Os raspões e cortes nos joelhos apresentaram a casca amarronzada da cicatrização. Puxar uma casquinha revelou a pele lisa e macia por baixo, totalmente curada.

Caramba.

Mata o amaldiçoou ou algo assim? Seu pai teria alguma passagem bíblica para essa situação?

Um barulho na rua interrompeu sua linha de questionamentos. O estrondo surdo agitou as cortinas da janela e disparou o alarme de um carro ao longe. O medo de ser outro terremoto tencionou os ombros de Alequis.

Ele correu para a janela, olhos afoitos disparando para fora. Nenhum sinal de catástrofe continuada. O abalo vibrou e desapareceu. Em compensação, a forma alta e esguia inconfundível de Mata atravessou a rua em direção à padaria.

Alequis apertou o punho da faca, o palpitar suave do metal correspondeu ao gesto.

Ele teria respostas. Agora.

Voltando-se para a caixa no chão, pegou o fone tradutor e o encaixou no ouvido. Passos silenciosos o levaram do quarto à cozinha. Uma vela acesa às pressas iluminou a escada para o andar inferior. Manusear a faca, a vela e as chaves do portão demandou um certo grau de habilidade, para facilitar, ele prendeu a faca na cintura da bermuda. Quando o portão abriu, emitindo um rangido especialmente alto no silêncio da madrugada, Alequis estava pronto para explodir com seu interrogatório.

As palavras, porém, engavetaram na garganta, sua atenção redirecionada para um único ponto.

— Isso é sangue?

A chama da vela derramou um brilho acobreado sobre Mata, tornando nítida a imensa mancha carmim no moletom claro. Ela olhou para baixo e tocou o tecido. Soltou um grunhido desagradável antes de tirar o casaco pela cabeça; a touca escorregou durante o movimento, levando a bagunça de uma franja lisa para cobrir o rosto dela.

A imagem entregue ao olhar de Alequis fez seu queixo bater no assoalho.

— Puta que pariu.

Mata se concentrou no casaco.

— Sim, preciso lavar.

— E esse machucado aí? — ele apontou, os olhos presos no buraco sangrento na clavícula dela. Porra, era do tamanho de um ovo!

Mata apalpou a carne lacerada. Alequis estremeceu em reflexo.

— Isso aqui? — ela sorriu. — É que preciso comer.

Os segundos se estenderam após a afirmação. Os dois se encararam numa imobilidade nascida do absurdo. Quantos níveis mais Alequis despencaria na loucura?

Ele suspirou.

— Vai, entra — abriu passagem para o corredor.

O cheiro ferroso de sangue permeou o ar ao redor de Mata. Alequis a deteve no tanque de lavar roupa e mandou ela usar o sabão disponível para se livrar do fedor.

Em vez disso, Mata colocou o casaco ensaguentado dentro da pochete — o tamanho total da coisa não alterou um centímetro com a adição. Um vidro branco emergiu no lugar, e Mata esfregou um creme incolor nas mãos, braços e rosto. O ferimento também foi esfregado, numa indiferença tão grande que o estômago de Alequis revirou.

— Que troço é esse? — indicou o produto cujo cheiro lembrou os esmaltes de sua mãe.

— Esterilizador — ela derramou mais sobre o machucado, então enfiou os dedos no... Ah, ele desviou o olhar. — O que? Não posso correr o risco de infectar.

— Agora ela se preocupa com infecções — ele murmurou para a chama oscilante da vela. — Estamos na porra de uma pandemia, gênio, por que você não usou máscara nem álcool todos esses dias?

Espera, ele esqueceu de pôr uma máscara ao descer...

— Sou imune a maioria dos seus vírus — Mata afirmou. — Já um projétil vegetal oferece preocupações concretas. Rastrear células nocivas enraizadas é um processo tedioso.

Alequis a encarou. Qual parte desse papo esquisito devia abordar primeiro? Seus vírus? Projétil vegetal? Células nocivas enraizadas?

Ok, havia uma pergunta crucial nessa situação.

— Você usa drogas, Mata?

— Drogas? — ela repetiu, em português. O sotaque pareceu duas vezes mais pesado quando comparado a clareza eletrônica do tradutor.

— É, merdas tipo cocaína e crack.

Ela meneou a cabeça.

— Meu tradutor não está familiarizado com essas palavras. Explique o significado. Incluirei nas próximas atualizações.

— Quer saber, esquece, só... esquece.

Ele se virou em direção à cozinha da padaria. Sentiu a presença de Mata o seguir. Fixou a vela na bancada, e reuniu as sobras de pão do dia anterior em uma sacola.

— Pronto — entregou os pães à Mata —, aqui, você pode comer tudo isso. De graça. Eu só quero que você me explique que porra é essa — retirou a faca da cintura para mostrar a Mata.

Pela primeira vez desde que se conheceram, a comida disponível não foi o foco imediato dela. Seus olhos dobraram de tamanho e sua respiração pausou por um segundo. Estendeu a mão para a faca com a clara intenção de pegá-la.

Um reflexo nascido do nada levou Alequis a puxar a arma mais perto si, dois passos para trás.

As sobrancelhas de Mata arquearam. Uma risada baixa se seguiu, a nota inconfundível de zombaria presente no som.

— Não vou tomar — ela prometeu, o sorriso em seus lábios era divertido. — Quero apenas ver.

Alequis deu sua própria risada de deboche.

— Você acha que eu confio em você? Eu não esqueci isso aqui, não — ergueu a mão direita, exibindo a palma cicatrizada. — Você vai responder as minhas perguntas, depois vai sair por aquela porta e não voltar nunca mais, entendeu? E para ver a faca você só precisa dos olhos.

Mata levantou as duas mãos ao ar em gesto de rendição.

— Você ainda está irritado. Compreensível. Fui muito brusca da última vez. Peço desculpas — as palavras de arrependimento entraram em desacordo com sua expressão; os olhos brilhantes e alertas, os dentes afiados surgindo no sorriso empolgado. — Eu disse antes: a arma pertence a você. Não posso tomar. Estou apenas impressionada. Fiquei em dúvida se daria certo, mas seu espírito foi forte o suficiente para reanimar essa arma. Parabéns.

— Reanimar? — ele encarou a faca. — Como assim?

Mata enfim se voltou para os pães. O barulho da sacola plástica sobressaiu no silêncio da noite.

— Essa é uma arma de vínculo. Quanto mais forte o proprietário, mais poderosa ela se torna. — Ruídos de mastigação, mais sussurros de sacola. — Não sabia se os seres desse planeta estavam aptos para uma conexão. Você provou que sim. Agora você e a arma compartilham o mesmo fôlego. Parabéns.

Ele deslocou seu olhar incrédulo para ela.

— Tem certeza que você não está drogada? — Mata inclinou a cabeça. Alequis suspirou, e tentou explicar. — Sob efeito de substâncias entorpecentes e alucinógenas. Do tipo recreativas.

— Drogas — ela assentiu para o entendimento alcançado. — Jamais uso drogas. Este planeta também não deve possuir uma substância capaz de superar meu metabolismo.

Os ombros de Alequis despencaram. A tecnologia do tradutor se tornava inútil quando tudo o que saía da boca de Mata era um emaranhado de besteiras.

— Você não é desse planeta — indagou ao massagear a têmpora onde sua veia mais escandalosa começou a pulsar —, é isso o que quer dizer?

— Sim, venho do sistema — ruído estático —, terceira casa da nação — ruído estático —, a 7,9 triângulos de distância deste sistema.

Alequis estalou o indicador no aparelho em seu ouvido.

— Cacete, você não fala nada com nada, e essa merda de fone não ajuda.

Mata amassou a sacola vazia em suas mãos e a depositou no tampo da bancada.

— Você não acredita em mim?

— E tem como acreditar? — ele retrucou, esforçando-se ao máximo para manter o volume da voz baixo. — Estou começando a achar que você fugiu de algum manicômio.

— Sua crença não é requisito para os fatos — ela sorriu. — A realidade é a realidade, independente da lógica.

Certo, ele aturou de mais.

— Você teve a sua comida, pode ir embora.

Mata balançou os ombros, indiferente. O gesto atraiu o olhar de Alequis para o machucado limpo, embora ainda sangrento, na clavícula dela.

— Espera — ele pediu antes dela se afastar rumo ao portão. — Como você conseguiu esse buracão aí?

Ela levou uma das mãos para a carne lacerada, o rosto sombrio como se a escuridão da cozinha tivesse infiltrado em seu humor.

— Fui atacada por emissários do meu planeta — outro balançar de ombros. — Eles estão tentando me matar.

Apesar das afirmações anteriores de Mata sobre drogas, as chances desses “emissários” serem traficantes cobrando dívidas eram bem altas na humilde opinião de Alequis.

— Por que eles querem te matar?

Ela soltou um suspiro, algo que soou tão cansado

— Minha nação se formou nas bases da guerra. Nascer, lutar e morrer em combate, é tudo o que um — ruído estático — pode almejar na vida. Perceber o ciclo infinito de morte e sangue tornou a minha existência sem sentido. Decidi fazer algo sobre isso, perseguir um objetivo diferente de guerra. Viver uma vida de verdade. — Ela sorriu, um sorriso tanto divertido quanto resignado. — Meus superiores não concordaram. Agora estou sendo perseguida pelo meu antigo esquadrão de batalha. Grande ironia.

Não havia como aquilo ser verdade, porém o cheiro ocre de sangue entranhado nas narinas de Alequis, bem como a faca pulsante em sua mão, o fizeram questionar:

— Você não tem medo deles?

Uma expressão confusa ocupou o rosto de Mata.

— Medo? — ela riu alto, tão alto que Alequis temeu que seu pai, ou a vizinhança inteira, pudesse ouvir. — Medo de que? Não existe criatura neste universo capaz de me deter.






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