Domingo, 27 de dezembro de 2020

Alequis acordou em um baque. Braços e pernas se agitaram em reflexo para empurrá-lo contra a cabeceira da cama, encolhido. Seu olhar saltou pelos cantos escuros do quarto, o arfar errático dos seus pulmões rompendo o silêncio da noite.

Nada o atacou.

Um pesadelo. Certo. Apenas um pesadelo.

Seu coração podia voltar ao ritmo normal e o suor em sua pele podia evaporar levando consigo a camada sufocante de medo. Foi apenas um puta pesadelo.

Os vultos desformes que o perseguiram naquele corredor infinito eram lembranças remanescentes de algum filme de terror, assim como os gritos agudos... Porra, os gritos! Ainda tilintavam em seus ouvidos. O som do desespero, da dor, da morte.

Ele cobriu as orelhas para abafar os ecos infernais. Os olhos fechados com força empurraram as lágrimas represadas antes de trazer à tona uma memória visual: o salão grande e espaçoso, os corpos partidos e desmembrados espalhados pelo chão, tanto sangue.

Ele engasgou, o estômago embrulhado.

Uma dor surda pulsou nos confins do seu tórax. As mãos trêmulas tatearam para se certificar. Sim, ótimo, seu peito estava inteiro, não aberto de lado a lado como um porco no... A ânsia subiu por sua garganta. Suas mãos correram para tapar a boca. Respirar pelo nariz, ele tinha que respirar pelo nariz.

Merda, porra, que inferno.

A massa nojenta desceu o caminho de volta para o estômago. Alequis ofegou por longos instantes. Os olhos arregalados devido ao receio de piscar e ver outra imagem assustadora.

Xingando baixinho, ele afastou a umidade das bochechas e jogou as cobertas de lado.

Em qualquer outra ocasião, o peso dos dezoito anos o fixaria na cama. Agora, a vergonha era mil vezes menor que o pânico enquanto marchava para o quarto do pai.

Uma fresta na porta, e Alequis viu o velho esticado na lateral da cama de casal, o ronco reverberando pelas paredes. Ao entrar, ele deixou a porta aberta para a luz do corredor afastar o breu.

Um toque hesitante no ombro do pai.

— Ei, pai, pai. — O velho estremeceu ao despertar. Alequis se apressou em dizer: — Eu sonhei que alguém me matou.

— Misericórdia! — seu pai se sentou, atrapalhado.

Alequis assumiu um lugar na beirada da cama, a coluna encurvada e os braços abraçados ao redor das pernas. Nessa posição ridícula de tão infantil, detalhou os cenários pavorosos criados por seu cérebro. Narrou a sequência de eventos: a corrida no corredor, a chegada ao salão horripilante e o fim brutal, no qual teve o tronco rasgado do pescoço ao umbigo por uma criatura monstruosa.

O ser era grande, massivo e roxo. O rosto uma sombra nebulosa, ausente de nariz, boca e olhos. A princípio, o Alequis do sonho não temeu a aparição. Estava com muita...

— Sei lá, acho que raiva — sussurrou para o pai. — Aquele troço tinha matado todas as pessoas do salão. Eu fiquei meio irritado... e chateado. Acho que eu conhecia aquelas pessoas, sabe?

O velho zumbiu em concordância, os olhos inchados de sono fixos em Alequis.

— Eu falei alguma coisa pro bicho. Não sei o que, não lembro das palavras, mas ele deu uma resposta que me deixou com mais raiva ainda e eu fui pra cima dele. Aí... deu um borrão, aconteceu um monte de coisa que não lembro, e quando percebi já estava preso no chão, o bicho montado em cima de mim. Ele começou a rasgar o meu peito e rir, rir pra caraca. — Ele espalmou o coração na lembrança. — Então eu morri. E acordei. E vim aqui falar com você.

Seu pai zumbiu outra vez, a expressão séria. Juntou as mãos de Alequis entre as suas e, em voz firme, entoou uma extensa oração, na qual pediu a Deus auxílio e proteção. Depois, pegou a bíblia da mesa de cabeceira e a abriu no Salmo 91.

Alequis não seguia uma religião e pouco se interessava em questões espirituais, ainda assim, encontrou uma sensação calmante na leitura dos versículos.

— Eu vou pedir oração no grupo da igreja — seu pai falou ao fechar a bíblia. — Deus te mandou um sinal, pra você ficar alerta e tomar cuidado.

— E por acaso eu fiz alguma coisa pra alguém querer me matar? — Os dedos de sua mão cortada, envolta em esparadrapo, flexionaram levemente. — Aquela doida da Mata quase arrancou a minha mão, será que agora ela vai tramar a minha morte?

— Deus é mais, não fala um troço desses — seu pai devolveu o livro à mesa de cabeceira, então esfregou o rosto cansado. — Jesus, quem vai ter pesadelo sou eu.

Alequis brincou com a barra da camisa. O assombro causado pelo pesadelo diminuiu, a autoconsciência, aumentou.

— Eu vou deitar — disse, levantando-se. — Pode voltar a dormir.

O velho assentiu e reorganizou as cobertas.

— Tudo bem, se você sonhar de novo me chama — assim que apoiou a cabeça no travesseiro, ele apagou; seu ronco enchendo o quarto no segundo seguinte.

Alequis se retirou a passos suaves.

De volta ao seu quarto, seu olhar foi atraído para a escrivaninha. Ou melhor, para a faca sobre a escrivaninha.

Ele se aproximou, o cenho franzido enquanto questionava a decisão de manter aquela coisa. Por um lado, os médicos poderiam precisar de uma amostra da ferrugem para identificar a bactéria que tentaria matá-lo nos próximos dias; por outro lado, uma noite de sono tranquilo era impossível com o fedor de ferro flutuando no ar — da ferrugem ou do sangue, eis a questão.

A mera lembrança de Mata usando aquilo para cortá-lo já era combustível para novos pesadelos.

A desgraçada insana era o próprio monstro, e Alequis jamais a perdoaria.

Em movimentos rápidos, ele esvaziou uma caixa de sapato e enfiou a faca dentro dela. O aparelho tradutor, esquecido com Alequis após aquela palhaçada, recebeu o mesmo destino.

Um pulo para dar impulso, e ele jogou a caixa em cima do guarda-roupa, bem longe de sua visão. Em seguida, entreabriu a janela para a brisa levar embora o cheiro ferroso.

Marcaria uma consulta no posto de saúde na próxima semana. Fora a ferrugem, o contato com o sangue de Mata era outra fonte de preocupação. Só Deus sabia os tipos de doenças que a maluca possuía.

Assim que deitou na cama, puxou o celular do travesseiro e acessou a playlist de pintura acrílica. Madrugadas insones estavam longe de ser novidade.
O último domingo do ano, e Alequis deixou os arredores do Morro do Banco pela primeira vez em dois meses. O grupo de amigos no WhatsApp estava em polvorosa. Balões, taças de champanhe e fogos de artifício entulharam a caixa de conversa. O celular dele vibrou com notificações durante todo o percurso até o ponto de ônibus.

Alequis revirou os olhos para a comoção. Ok, ele não compareceu às últimas reuniões entre os amigos, mas os motivos eram válidos. Era preferível se distanciar agora e garantir um encontro seguro no futuro do que se encontrar agora e um deles não ter futuro porque morreu de covid. Qual a dificuldade de entender?

Porém esse era o último domingo do ano e seus amigos insistiram mais que o normal.

Ah, e dona Nilza morreu sem ser velada. E sua mãe estava em outro estado. E o natal de Alequis e seu pai foi uma bosta. E o mundo parecia prestes a acabar. E ele teve a mão rasgada por uma louca. E seus pesadelos eram assustadores. E sua vida era uma bagunça. E ele queria, muito mesmo, ter um momento relativamente normal, cercado por seus amigos em uma lanchonete.

O ônibus veio com poucos passageiros. Alequis conseguiu um assento no banco mais alto, na janela. Trinta minutos de viagem para o Rio das Pedras era uma aventura tensa e emocionante. Punhados de álcool nas mãos e braços e o prazer bobo de olhar pela janela enquanto a cabeça se perde em pensamentos.

Ele sentia falta de pegar o ônibus cheio para a escola. Na época em que estar rodeado por pessoas estranhas apresentou o único risco de ter o celular ou carteira furtados. Também sentia falta da escola. Não por causa dos estudos ou mesmo da socialização — neste caso, até preferia o contato online. Não, ele sentia falta da... estabilidade da rotina? A certeza de que, chuva ou sol, a escola estaria ali para ser frequentada.

Escolas fechadas, ano letivo suspenso, foram seu maior choque em 2020.

O ônibus sacolejou. Alequis lançou um olhar atento na direção do motorista. O tremor continuou, como se passassem sobre uma pista de pedregulhos. As alças de mão chacoalharam num ritmo crescente. Um guincho ecoou quando o ônibus freou com brusquidão. A cabeça de Alequis se chocou contra a janela, um impacto mal registrado.

O buraco aberto no meio da rua, engolindo uma van de passageiros, exigiu sua completa atenção.

O tremor intensificou. Postes de luz oscilaram, fios elétricos se partiram e chicotearam o ar. Gritos soaram de todas as direções, acompanhados por buzinas e alarmes de carros e o crack-crack de coisas quebrando.

Alequis se pôs de pé agarrado às barras de apoio.

Um terremoto. Essa porra era um terremoto.

As portas do ônibus se abriram e o motorista gritou para os passageiros descerem. Rápido. O buraco que engoliu a van estava crescendo.

Alequis se embrenhou na fuga alucinada.

Colocar os pés no chão rendeu uma súbita vertigem. A vibração da terra encontrou um caminho através do corpo dele. Puta merda, era pior que os efeitos da hipertensão.

Arfante, ele ziguezagueou entre o mar de veículos batidos e abandonados. Um estrondo retumbou às suas costas. Algo grande, muito grande, acabou de cair.

Alequis não se virou para conferir o que era, tampouco deixou o tombo que esfolou seus joelhos diminuir seu avanço. Uma nuvem densa de poeira roubou a claridade do dia.

Ele continuou a correr.

E, quando uma explosão sobressaiu na sinfonia do caos, ele correu mais.
A Rede Sismográfica Brasileira acaba de confirmar que as ocorrências registradas nesta tarde no Rio de Janeiro foram causadas por um terremoto de magnitude 6,3 na escala Richter. A região metropolitana foi a mais atingida pelo abalo. Vamos para um giro de notícias com nossos...

Alequis pausou a transmissão e apagou a tela do celular. A bateria estava a beira da morte e os jornalistas não diriam nada que ele já não soubesse.

Estavam todos fodidos, pronto.

Ele apoiou o rosto nas palmas e tentou limpar a mente.

Da sala, podia escutar o pai no portão de casa, no primeiro andar, narrando a algum conhecido o livramento que Deus deu ao Alequis.

Fora os joelhos ralados e uma muda de roupas esfarrapadas no lixo, nada de pior aconteceu a ele. Em comparação, um número ainda não estimado de pessoas estavam mortas ou desaparecidas. Prédios desabaram como uma fileira de dominós, crateras engoliram ruas e casas inteiras.

Em vista do cenário geral, talvez seu pai tivesse razão em alardear a misericórdia divina, embora Alequis não tivesse tanta certeza da relação direta entre o pesadelo desta noite e um puta terremoto.

Ele também estava cansado demais para demonstrar gratidão às forças superiores.

A frágil rede elétrica do Morro do Banco sucumbiu aos abalos sísmicos — assim como dúzias de casas e prédios. Sem previsão do reabastecimento de energia, a luz das velas prometia ser uma fiel companhia nos próximos dias.

O burburinho na rua era incessante. Grande parte dos moradores deixaram suas casas escuras para ocupar as calçadas e bancos da pracinha. A central de fofocas e boatos operava a pleno vapor.

— Alequis — seu pai apareceu na porta da sala, a chama das velas mal iluminando sua expressão. — Sai dessa escuridão, rapaz. Vem ficar aqui fora.

Alequis estalou a língua.

— Eu não quero saber de rua — ergueu-se de sua posição prostrada no sofá. — Vou deitar.

As vistas dele estavam pesadas, a mente já embotada pelo sono. A adrenalina do dia pelo menos serviria para lhe dar um pouco de descanso. Antes de partir, porém, deu voz a uma dúvida.

— A maluca apareceu aqui de tarde?

— Mata? Hum, não, não. Talvez esteja presa por causa do terremoto.

— Deus te ouça.

— Ei!





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Comentários
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Um comentário:

  1. Essa cena do Alequis procurando o pai após ter um pesadelo foi inspirada numa ocorrência real envolvendo meu irmão caçula e minha mãe.
    Meu irmão acordou transtornado uma madrugada após sonhar que a Samara, do filme O Chamado, perseguiu ele. O medo foi tanto que ele acordou a minha mãe na mesma hora para dizer: "eu sonhei com a Samara". Minha mãe não entendeu nada, e no dia seguinte nós rimos até a barriga doer Kkkkkk Meu irmão tem 15 anos kkkkkkkkkkk Espero que ele nunca leia isso

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