Quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Alequis riscou mais um dia do calendário. A ponta da caneta era a lâmina da guilhotina na qual 2020 perderia a cabeça. Oito dias, só mais oito dias, e esse triste capítulo na história da humanidade terminaria.

— Bom dia — alguém cumprimentou às costas dele.

Alequis conferiu a hora no celular antes de se voltar para o balcão de atendimento.

— Já é boa tarde — avisou, e deteve-se ao encarar a cliente.

A Padaria do Baixinho era um estabelecimento familiar, situado na área mais alta da comunidade Morro do Banco. A clientela era limitada aos moradores próximos, pois até o pessoal da parte baixa evitava enfrentar as ladeiras. A mulher diante do balcão era um rosto novo, mas, pela total desconsideração com que ela ultrapassou as marcas de distanciamento gravadas no chão, Alequis já a detestava.

— No que posso ajudar? — indagou, esquecendo-se de modular a voz para algo simpático. Por sorte, seu pai estava nos fundos da cozinha, ocupado demais para ouvi-lo intimidar outro cliente que quebrou as medidas sanitárias.

Alequis tinha as broncas do “seja legal ou perderemos vendas” decoradas. O problema era que as pessoas não colaboravam. O limite estava no chão? Não atravesse. A placa na fachada exigia uso de máscara? Coloque a máscara. O vidro de álcool em gel disponível na primeira prateleira ao entrar na padaria não era um enfeite. Use! Os cuidados básicos garantiriam a segurança de todos durante o atendimento.

Se a pessoa não queria respeitar as normas, que fosse comprar pão na casa do caralho.

A mulher perdeu os três pontos com agravantes. Burlada a distância mínima de afastamento, ousou se apoiar no balcão de vidro. Ficou tão perto que atraiu atenção para a trilha de sardas a salpicar suas maçãs do rosto e nariz. Um detalhe que apenas evidenciou a ausência de uma máscara a cobrir sua face. O perfume de álcool recém-usado estava longe de ser detectado; somente o típico cheiro de assados e café fresco aliado ao desinfetante floral com que Alequis limpou o piso mais cedo.

Ela sorriu como um raio de sol sem imaginar o quão próximo estava de ser expulsa aos gritos.

— Tudo posso comer?

Um sotaque estrangeiro deformou as palavras. A maçaroca de sílabas obrigou Alequis a engolir os xingamentos.

Gringos eram sua especialidade.

No antigo trabalho, num restaurante classe alta de Copacabana, encontrava dúzias deles diariamente. Tinha sido apenas um jovem aprendiz, mas seu inglês impecável, resultado de anos de curso particular, o tornou conhecido entre os frequentadores.

— Pode repetir? — pediu, uma dose extra de tolerância em memória às velhas atividades.

A moça bateu os indicadores no tampo envidraçado, seus olhos correram pelos itens do mostruário como se pudesse prová-los na língua.

— Tudo posso comer? — disse, devagar.

A pronúncia vagou na linha tênue entre o razoável e o incompreensível. Nota três de dez. Seu idioma nativo não parecia ser o inglês, tampouco espanhol. A aparência não ajudou a especificar uma nacionalidade. A pele de um marrom suave e os olhos grandes, muito castanhos, seriam comuns em diversas regiões do globo. O mesmo para os cabelos pretos e escorridos, presos em uma trança caída sobre o ombro.

— Sim, é tudo comida, você pode comer — ele respondeu, cruzando os braços. Dois passos atrás colocaram suas costas contra a bancada oposta ao balcão. O máximo de distância que conseguiria pôr entre eles. — Temos opções sem carne se quiser algo meio que vegetariano.

A mulher piscou, seu rosto assumindo uma expressão confusa. Alequis sorriu por trás da máscara. A frase era complexa demais para o vocabulário dela? Que pena. Ele não pretendia ser mais cooperativo que isso.

Ela então concertou sua postura semi-debruçada e o sorriso dele escorregou.

Ok, a maioria das pessoas era mais alta que ele, há anos aceitou este fato, mas a mulher era alta demais. Alta de verdade. Tão alta que a envergadura de seus braços abertos poderia abarcar a largura da padaria... o que nem era uma boa referência, considerando como o espaço era apertado.

Uma jogadora de basquete gringa se mudou para a comunidade e ninguém percebeu? Impossível. A central de fofocas e boatos era uma das poucas instituições fortalecidas pela pandemia. Uma turista, talvez? O Morro do Banco tinha acesso privilegiado para a Floresta da Tijuca e, vez ou outra, alguns grupos de fora apareciam para se aventurar pelas trilhas.

Alequis lançou um olhar para a frente da loja. Nenhuma movimentação diferente na rua, apenas os mesmos carros estacionados no meio-fio e dois pirralhos correndo em direção à pracinha.

A mulher estava sozinha, concluiu, voltando a estudá-la. O conjunto creme de casaco e calça de moletom parecia gasto e confortável, embora um tanto exagerado para o frescor do dia. A touca vinho metida em sua cabeça, com mechas mais curtas do cabelo escapulindo em desalinho, emprestou um ar estiloso ao visual. A pochete volumosa que ela carregava na cintura era feia. Simples assim. O tom berrante de laranja destoou do restante da composição a ponto de ter sido a primeira coisa para qual Alequis olhou ao se deparar com ela.

Mochileira.

Sim, com certeza uma mochileira. E do tipo corajosa, porque perambular desacompanhada em uma comunidade aleatória do Rio de Janeiro, falando menos que o básico do português, era para poucos.

— Quero, por favor — disse ela.

— Quer o que, moça?

— Tudo.

Alequis olhou para o balcão — onde as mãos dela ainda repousavam —, depois, a encarou.

— Tudo?

As fornadas do período da tarde haviam acabado de sair. Quatro dezenas de pães doces cobertos por geleias de goiaba, maracujá e banana. Duas dúzias de sonhos de doce de leite, polvilhados de açúcar e canela. Uma travessa de pão de queijo, outra de pães amanteigados. Uma fileira com quinze coxinhas de frango e catupiri, outra com enroladinhos de queijo e presunto, e mais outra de quibes assados. Ainda havia os pedaços de bolo de chocolate, de laranja e broa de milho que sobraram do primeiro turno. Eram o bastante para durar até o fim do expediente.

O aceno afirmativo da gringa disse o contrário.

— Olha, eu tenho mais gente pra atender — comentou, a mente focada na dona Nilza, membro vitalício do top dez clientes insuportáveis. A velha entraria no modo fúria se não tivesse sua meia dúzia de pães amanteigados para comer no café da tarde. — Eu só posso te dar uma parte de algumas coisas — aproximanou-se para abrir os fundos do balcão. — Quer que embale pra viagem?

A mulher meneou a cabeça para o lado, um movimento preguiçoso; as sobrancelhas levemente franzidas.

— Acabo de chegar.

Ele deu um suspiro interno. Repetiu a oferta em inglês para mostrar que possuíam outro caminho comunicativo. Esperou vê-la se iluminar em surpresa e alívio ao encontrar um falante da língua universal. Em vez disso, o vinco entre as sobrancelhas dela se aprofundou num gesto tão claro quanto um I don’t speak English, parceiro.

De volta ao português.

— Quero saber como você prefere levar a comida: nas sacolas ou nessas embalagens de isopor?

— Não.

E esse era o momento de Alequis repensar suas escolhas de vida. Por que estava trabalhando com o público, sendo o público esse bando de antas lerdas que transformavam a compra de um pão em um ato tão complexo quanto enviar um foguete para a lua?

No restaurante ele tinha um bom motivador para investir na paciência: praticar o inglês. E se saiu bem, tão bem que lhe ofereceram uma vaga fixa no quadro de funcionários. Ele aceitou, claro. Aos dezessete anos, ter uma fonte de renda estável era tudo com o qual podia sonhar. Então veio a pandemia, seguida pela quarentena, e o restaurante fechou as portas por meses a fio. Na hora de cortar custos, o contrato de Alequis foi um dos primeiros a ser sacrificado.

A padaria também sentiu os reflexos da crise que se alastrou pelo mundo como o próprio corona vírus. Seu pai precisou dispensar os dois funcionários. O filho desempregado, parado em casa desde o fechamento das escolas, era a mão de obra barata que podia suprir a demanda de serviços.

Bem, Alequis não teve muitas chances de fazer escolhas nesse caso. 2020, aliás, era o ano da aceitação. Os cenários mais absurdos se tornavam realidade e as pessoas só podiam assistir. Assim ele viu seus pais se divorciarem, seu namoro chegar ao fim, seu emprego se perder, seu histórico escolar perfeito atrasar um ano inteiro e ainda ficar preso nessa merda de padaria, com essa gente burra!

Foda-se a ideia de ser legal.

— Não o que, minha filha? — retrucou.

A gringa gesticulou para o balcão.

— Não posso levar. Quero agora, por favor.

— Vai comer aqui?

Ela acenou afirmativamente. Ele negou com a cabeça.

— Você não vai aguentar comer tudo — decretou. Na prateleira ao lado, apanhou dois pratinhos de plástico e empilhou sobre eles um punhado de pães de queijo, duas coxinhas, um sonho e uma fatia de broa. Deu a volta no balcão para depositá-los na única mesa disponível aos consumidores. — Aqui, come esses. Se aguentar mais depois, é só pedir.

Não aconteceria. Os tamanhos generosos faziam valer cada centavo do valor, e entupiriam a pobre coitada antes que passasse dos salgados para os doces.

Ela sorriu outra vez ao se aproximar da mesa. Sem uma barreira física entre eles, Alequis se sentiu minguar para metade da sua estatura real. Um motivo a mais para sustentar a postura firme e inflexível.

Quando ela se sentou, ele notou a trilha de terra cobrindo os azulejos do piso — o piso que ele gastou um bom tempo para lavar. Os flocos de barro seco se soltaram da crosta imunda agarrada às solas das botas da mulher.

— Obrigado — ela murmurou, o foco concentrado na comida.

Pelo menos era educada. Já era mais do que podia esperar da maioria dos outros imbecis. Se ele pegar a vassoura sempre à disposição perto da caixa registradora, a usará para varrer a terra, não acertar a cabeça da mulher.

Eu não vou dar vassourada em ninguém hoje, entoou como um mantra ao retornar para o seu posto. Pegou a vassoura e... sim, a madeira resistente do cabo prometia um golpe contundente. Dependendo do manejo, ela não quebraria, permitindo que Alequis desferisse mais de um ataque. A satisfação duraria pouco, no entanto; só até seu pai emergir da cozinha, cuspindo fogo e maldições. Não valia as consequências, realmente.

Suspirando, ele se abaixou para pegar a pá de lixo. Ergueu-se, virou-se e congelou.

Dois pratinhos de plástico estavam lado a lado no tampo do balcão. Vazios. De pé do outro lado, a mulher o encarou em silenciosa expectativa. No sorriso dela, caninos afiados reluziram.

— Posso comer mais.

Tudo bem, isso era... o que?

Ele vagueou os olhos pela loja à procura de alguma dica. Sem chances de alguém comer tão rápido. Porém não havia restos jogados no chão ou deixados sobre a mesa. Na verdade, o aumento de terra no piso era a única prova de que a mulher sequer se movimentou.

Alguém tão grande devia ser mais barulhento, não?

— Eu levo pra você — disse, e a manteria em seu campo de visão permanente a partir de agora. — É só esperar na mesa.

Ela aquiesceu, os traços finos de seu rosto livres de qualquer tensão que o olhar desconfiado dele poderia evocar.

Vinte minutos, vinte míseros minutos depois, e as prateleiras do balcão foram esvaziadas.

Entre uma leva e outra de comida, Alequis concluiu que a mulher não mastigava, somente empurrava oferendas para o buraco negro residente em sua boca. Os seis pães da dona Nilza só se safaram porque ele os escondeu em uma das gavetas da bancada.

Uma gota de suor escorreu pela lateral do pescoço dele. O esforço de acompanhar o ritmo voraz daquela criatura glutônica preencheu sua cota diária de atividade física. Um pouco ofegante, remexeu as beiradas da máscara enquanto calculava o valor da conta. O elástico na orelha repuxou seu cabelo curto, fazendo um ponto em meio aos fios pinicar.

Arrastando os chinelos, aproximou-se da mulher ainda sentada à mesa.

— Aqui — depositou a conta diante dela —, aceitamos cartão de crédito e débito.

Ela analisou o papel com suave interesse, em seguida, na mesma graça vagarosa de outrora, olhou para Alequis.

— Cartão?

Ele puxou uma respiração profunda. Gringos eram sua especialidade? Por favor. Esperava nunca mais atender um deles.

— Sim, cartão de crédito ou débito. Pague em dinheiro se quiser — apenas faça e suma!

— Dinheiro — ela repetiu, e algum entendimento iluminou seu rosto. Uma risada baixa e divertida se seguiu. — Não tenho dinheiro.

Silêncio cresceu como um câncer pela padaria. O ronco de uma moto na rua soou especialmente alto, assim como as vozes agudas das crianças que brincavam na pracinha ao lado. Uma trilha sonora perfeita para embalar os pesadelos de Alequis com a motosserra ligada e os demônios cacarejando a espera de sangue.

Após cinco segundos, o borrão vermelho se dissipou das vistas dele; substituído por uma vertigem que colocou as paredes de gesso para cirandar ao seu redor.

— Você não tem dinheiro? Dinheiro nenhum?!

A filha da puta deu outro aceno, sequer se dignou em exibir vergonha, ou arrependimento, ou a miníma sombra de preocupação com o tamanho do estrago que aquela conta daria ao caixa. Não, isso era problema de Alequis, assim como seria problema dele ocultar o corpo depois de a estrangular!

A escalada da pressão arterial aqueceu a pele dele como carvão em brasa. Uma onda de dor invadiu sua cabeça, ressoando pelo crânio até se instalar atrás dos olhos. A veia pulsando em sua têmpora era o sinal de alerta do seu organismo para ele se acalmar ou a expressão morrer de raiva ganharia um sentido bastante literal.

— Eu vou chamar o dono — cuspiu, e marchou para o balcão gritando: — Pai! Vem cá! E traz o meu remédio!

O zumbido de uma orquestra de mosquitos tilintou nos ouvidos dele, mas captou o abafado “ai, meu Deus” que veio dos fundos.

Instantes depois, seu pai cruzou a porta que conectava a cozinha e a loja. Um copo de água em uma das mãos e uma cartela de comprimidos na outra. As sobrancelhas espessas se agitaram ao reparar a mulher gigante parada no meio da loja.

— Bom dia — a arrombada cumprimentou.

— É boa tarde!

Ele estendeu os dedos trêmulos para pegar o comprimido oferecido pelo pai. Colocou-o na boca por baixo da máscara.

— Tira essa coisa pelo menos pra beber água — seu pai mandou ao entregar o copo, uma das mãos estendida para puxar a máscara do rosto de Alequis.

Ele se esquivou. Nem ferrando ficaria exposto em ambiente externo.

O movimento brusco, porém, fez o copo em sua mão oscilar, enviando respingos de água para sua camiseta e bermuda. O pulsar na têmpora intensificou. Ele respirou fundo, afastou o tecido da boca e bebeu o conteúdo do copo em três grandes goles. Depois, puxou outra longa respiração. Após sobreviver a onda de desgraças de 2020, seria uma piada cósmica Alequis ter um derrame às vésperas do fim do ano. Ah, o universo não teria esse prazer. E essa caloteira safada não receberia a chance de escapar enquanto ele convulsionava no chão.

— Essa maluca chegou aqui, comeu o mostruário inteiro e agora diz que não tem dinheiro pra pagar — ele contou tão logo se recompôs. — Olha o valor dessa conta.

Seu pai segurou a notinha entre os dedos. Os olhos esverdeados se arregalaram antes de dispararem pelas prateleiras do balcão como se para confirmar. Um “misericórdia” soou baixinho contra a máscara branca.

— Ela comeu tudo sozinha?

Alequis assentiu, seu próprio assombro com a sessão de comilança esquecido.

O velho retirou a máscara para alisar o bigode grisalho empoleirado sobre seus lábios. Uma mania perigosa em tempos de pandemia, mas Alequis se absteve de comentar — dessa vez.

— Você não é daqui, é? — seu pai indagou a mulher. — Qual o seu nome?

Ela demorou para processar a pergunta. A fala rápida e gutural do velho, acentuada pelos resquícios do sotaque cearense, era um novo desafio linguístico.

— Mata — disse, por fim.

— Mata?

— Ela é gringa — Alequis informou, pouco se importando com o nome estranho.

— Ah, eu me chamo Magno, tudo bem? — o velho ofereceu um aperto de mãos à desgraçada.

A mulher, Mata, encarou a mão estendida por alguns instantes.

Alequis torceu para ela possuir senso de autopreservação suficiente para ignorar o cumprimento. Uma vã esperança. O contato aconteceu, e ele o considerou um insulto pessoal.

— Quantas vezes eu tenho que dizer, pai? Não é pra apertar a mão dos outros! — Ele poderia chorar de frustração. Dez meses de quarentena e o velho, integrante do grupo de risco, insistia em bancar o simpático. — Você só pode estar querendo morrer, cara.

Agarrou o pulso do pai para separar aquela fonte de contágio. Alcançou o vidro pessoal de álcool 70 e despejou uma quantidade generosa na palma do velho.

Seu pai soltou um estalido de língua ao espalhar o higienizador.

— Ele ficou paranoico com esse negócio de vírus — contou à Mata, como se estivesse conversando com uma antiga conhecida. — Eu acho que só Deus pode proteger a gente dessa praga, não é?

— Deus faz a parte dele, você faz a sua. Esfrega entre os dedos, pai, entre os dedos!

— Já esfreguei, garoto chato.

— Pai? — Mata se inseriu na dinâmica, fitando o velho de um jeito interrogativo.

— Ele é meu filho — ergueu o polegar nodoso para indicar. — O nome dele é Alequis Israel. A mãe dele escolheu Alequis, eu escolhi Israel. Ela alternou a atenção entre eles.

— Pai, filho.

A entonação admirada era desnecessária. O parentesco só ficaria mais óbvio se Alequis raspasse a cabeça e vestisse o uniforme de padeiro. O porte baixo e robusto era o mesmo; assim como o formato oval do rosto e as sobrancelhas grossas. A diferença mais perceptível era a tonalidade bege-bronzeada da pele de Alequis e suas íris âmbar. O pai era um tom mais claro, numa versão rosada, e tinha os olhos verdes dramáticos, atualmente concentrados em Mata com incompreensível tranquilidade.

— Você esqueceu sua carteira?

Mata meneou a cabeça, um movimento que Alequis já aprendeu a odiar.

— Carteira?

— Para de bancar a sonsa, sua filha da...

— Ei! — seu pai advertiu, mirando-o de soslaio.

Alequis trincou os dentes e cruzou os braços. O pai queria tecer voltas e voltas ao redor do assunto? Tudo bem, ele não se meteria. A padaria não era sua, afinal. Deixa o dono resolver...

— Eu só acho engraçado — se pegou falando — você ficar aí todo calmo com uma conta de quatrocentos reais em aberto. Na minha humilde opinião, a pergunta mais importante aqui é como ela vai pagar essa porra?

O pai ricocheteou o rosto na direção dele.

— Cadê o respeito, rapaz?

Alequis tinha uma resposta criativa sobre o destino do seu respeito, algo que invocaria a ira do velho para o seu linguajar chulo, porém Mata o interrompeu.

— Posso pagar.

As feições de Alequis formigaram sob a pressão de uma carranca.

— Você disse que não tinha dinheiro.

Mata sorriu.

— Não tenho.

Ele segurou as bordas do balcão num aperto feroz. O impulso de correr para a rua e se jogar embaixo do primeiro carro que passasse era quase demais para resistir.

— Então como você vai pagar?!

— Posso trocar — ela se pôs a remexer o interior daquela pochete ridícula. — Tenho recurso.

Surgiu à luz um estojo retangular, de um material amarronzado semelhante ao couro. Parecia de qualidade, talvez até de marca. Colocou Alequis e seu pai na ponta dos pés para ver o que guardava. Uma peça de ouro, um relógio caro, um montante de notas de alguma moeda estrangeira, qualquer coisa para justificar o extremo cuidado de Mata ao manuseá-lo.

Mas era uma faca.

Uma faca enferrujada.

Uma faca enferrujada do tamanho das usadas para cortar pão; a lâmina carcomida e o punho frouxo, enegrecido e rachado.

Uma belíssima porcaria!

— É piada, né?

— Não — disparou Mata, o sorriso inabalável. — Arma.

Alequis jogou a cabeça para trás e riu, um ruído estridente e sem graça aos seus próprios ouvidos.

— Ela é doida — exclamou para o teto.

Recebeu um cutucão firme nas costelas.

— Olha a educação — seu pai chiou. Em seguida, falou à mulher: — Isso não serve como compensação, moça. A gente pode fazer assim, eu deixo a conta anotada e você volta mais tarde pra pagar. Tudo bem?

— Nem fodendo! Ela não vai voltar, pai. — Responsabilidade não era o forte daquela mulher, do contrário, não estariam nesta situação. — Ela tem que resolver isso agora, nem que seja lavando louça no caralho da cozinha.

— Alequis Israel — a voz do pai trovejou.

Ele fechou a boca em um estalar de dentes. Arfando, espalmou o peito e sentiu o coração bater, raivoso, contra as costelas. O remédio abafou a dor pulsante na cabeça, porém o mal-estar permaneceu lá, embotando sua visão e enfraquecendo suas pernas.

Em comparação, Mata continuou relaxada. Apoiou os cotovelos no balcão outra vez e inclinou-se para frente, o olhar curioso grudado em Alequis.

— Posso trabalhar — disse ela.

Alequis bufou diante de sua própria ideia.

— Esquece, eu não vou passar mais nenhum minuto perto de você, maluca. — Ele se encaminhou para a porta da cozinha. — Estou subindo.

Foda-se a merda toda, ele iria deitar um pouco.







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