Quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

O despertador do celular disparou às cinco da manhã. O tinido agudo do alarme reverberou pelo quarto escuro, anunciando o início de mais um dia de merda. Alequis afastou a notificação, silenciando o ruído irritante, e voltou a assistir o vídeo de pintura acrílica.

A artista havia feito um degradê com diferentes tons de azul para criar uma paisagem noturna. Salpicos de tinta branca encheram a tela de estrelas e uma lua redonda ganhou destaque na lateral superior. Agora, árvores longas e frondosas eram delineadas em tinta preta. Qualquer deslize do pincel e o trabalho seria arruinado.

Alequis torceu por isso.

Queria ver aquela mão firme oscilar, cometer um erro de cálculo e criar um borrão indisfarçável. O que a artista faria? Descartaria a tela, pintaria por cima, incorporaria a falha à pintura? O que?

Não houve resposta.

Ao fim do vídeo a paisagem estava imaculada, tão perfeita que ele podia se imaginar em uma floresta à meia-noite, observando a imensidão do céu estrelado.

Ele soltou o celular e apertou as pálpebras fechadas para aliviar a secura dos olhos. Içou o corpo para uma posição sentada, uma das mãos pousada na base da coluna à espera da pontada de dor que sempre vinha lhe dar bom dia.

Ah, aí estava ela.

— Porcaria de colchão velho.

Ele se arrastou para longe do aparelho de tortura. O costume guiou seus passos rumo à janela. Ao abri-la, uma brisa invadiu o ar estagnado do cômodo, e resfriou a pele do seu peito nu.

A massa de nuvens zangadas no céu prometeu outro dia nublado. Os postes da rua continuavam acesos, irradiando luz amarelada sobre as sombras persistentes da madrugada. Na pracinha, o vento empurrou os balanços de ferro e farfalhou as folhas das árvores. A suave melodia se misturou aos sussurros de movimentação que saíam dos prédios vizinhos.

Um vagaroso amanhecer para o Morro do Banco.

Para Alequis, a história era diferente.

Oito minutos a mais na cama e sua lista de tarefas já estava atrasada. Tal consciência assombrou os segundos gastos no peitoril da janela, embora não o bastante para fazê-lo sair mais rápido.

Porra, como estava cansado.

Devia se arrumar para descer, tomar café, repor os produtos da loja e preparar o balcão da padaria. Também precisava ligar para a assistência técnica, a gaveta da caixa registradora voltou a emperrar. E, cacete, qual era a data de entrega daquela redação no cursinho? Nem lembrava qual era o tema. Algo sobre vício em jogos de azar...? Ah, foda-se, ele devia apenas desistir. Quais eram as chances de passar no vestibular? Sequer sabia para qual curso se inscrever.

Não, não, ele realmente precisava entrar na faculdade. Ser um desempregado era merda suficiente, obrigado.
Uma graduação em administração seria ok. Turismo também. Ou uma licenciatura em inglês, ele era mais que proficiente no idioma. Na verdade, não. Odiaria dar aulas. Lidar com adultos era infernal, crianças seriam quinhentas vezes pior. Adolescentes então? Cruz credo.

Espera, ele ainda era considerado adolescente? O peso da maioridade repousava em seus ombros há pouco mais de um mês, porém sem consequências práticas. Ele era tão dependente do pai agora quanto foi aos dez anos de idade.

Caralho, ele precisava arrumar um emprego. Logo. Qualquer coisa. Desde atendente em call center a vendedor de loja.

Ah, é, eu odeio lidar com o público.

— Meu Deus, que eu faço da vida? — esfregou as palmas das mãos no rosto.

Devia ligar para a mãe. Ela vivia dizendo para procurá-la em busca de ajuda. Mas então ela insistiria para ele ir morar na casa dela, e Alequis não tinha enlouquecido a ponto de trocar o Rio de Janeiro por uma cidadezinha nos cafundós de Minas Gerais.

E largar seu pai sozinho não era uma opção.

Não, ele não ligaria para a mãe.

Batidas firmes acertaram a porta do quarto. O barulho repentino quebrou a quietude e Alequis saltou no lugar, estremecendo.

— Alequis? — seu pai chamou. — A padaria já vai abrir. Você acordou?

Ele piscou as vistas embaçadas. Em algum momento, o céu abandonou os matizes azul escuros da noite pelos tons cinzentos daquele feio amanhecer.

Ele estava ainda mais atrasado.

Ainda mais cansado.

— Já acordei — resmungou —, já estou indo.
— Feliz Natal, seu filho da puta! — foi o único aviso que Alequis recebeu antes de um par de braços finos enlaçar sua cintura e um corpo quente e macio se pressionar contra suas costas.

Ele congelou. Os pacotes de biscoito escapuliram por seus dedos rígidos e se espalharam pelo chão da padaria. Alguém iria morrer hoje. Seus pulmões inflaram com o fôlego necessário para dar um grito de guerra. Ficou entalado na garganta.

Tão rápido quanto os braços surgiram, partiram.

Risos soaram atrás dele, a entonação grave de seu pai e o distinto coaxar de dona Nilza.

— Rá, rá, rá, muito engraçado mesmo — ele se virou. — É melhor você não ter me contaminado, velha doida.

— Para de frescura, eu me preparei toda — ela retrucou, balançando as mãos calçadas por luvas cirúrgicas. Uma máscara estampada de oncinha cobria seu rosto, a tez branca afogueada em animação. A touca descartável em sua cabeça estava inchada pelo volume dos cabelos crespos. O cheiro de álcool em gel era quase opressivo. — Eu disse pro seu pai que não terminaria o ano sem te dar um abraço. Pronto. Te dei.

Os dois velhos voltaram a gargalhar.

Ambos às portas da terceira idade, sem levar a sério o perigo de uma doença que gostava de matar idosos. Ridículos, simplesmente ridículos.

A grande ideia por trás da ação, com certeza, era fazer Alequis surtar com o abraço. Pois eles não teriam esse gostinho. Ele se concentrou em recolher os biscoitos caídos, jogando por cima do ombro um frio:

— Só quero abraços depois da vacina.

Dona Nilza bufou.

— A gente tem é que abraçar agora! Ninguém sabe se vai estar vivo amanhã. Vocês viram o terremoto que teve lá no Japão ontem? O tanto de pessoa que morreu de uma hora pra outra?

— E o furacão nos Estados Unidos? — seu pai lembrou. — Nenhum cientista previu que ia ter furacão. O troço chegou e pegou todo mundo despreparado.

— Por isso eu digo, vamos comemorar agora! Vai ter churrasco lá em casa à noite e vocês dois estão convidados. Eu vou por aquele negócio de álcool gel na porta pro Alequis não reclamar. Ouviu, Alequis?

Ele se concentrou em organizar a prateleira de produtos.

— Tanto faz, eu não vou mesmo.

— Nossa, mas é um cavalo ignorante. Baixinho, como você aguenta ele?

A resposta do seu pai passou despercebida.

Organizar as prateleiras era responsabilidade de Alequis desde que assumiu o atendimento da padaria. A disposição dos produtos obedecia um padrão elaborado para disfarçar os buracos deixados pelas mercadorias em falta. O espaço vazio entre os biscoitos recheados e os pacotes de batatinhas era o relato categórico de que os itens foram porcamente reorganizados.

— Pai, você mexeu nas prateleiras?

O velho soltou um zumbido baixo e, mesmo de costas, Alequis sabia que as sobrancelhas grisalhas estavam enrugadas em apreensão. Ninguém além dele devia mexer na porra das prateleiras.

— Mata mexeu.

Alequis se empertigou e encarou o pai.

— A maluca caloteira?

Seu pai pausou o processo de abastecer o cesto de pão francês para encará-lo de volta.

— Ela é uma moça prestativa, ficou um tempão me ajudando na loja — contou, como se fosse a progressão mais natural após a patifaria protagonizada pela referida criatura.

— Quem é essa? — dona Nilza se intrometeu.

— A moça estrangeira que apareceu ontem.

— A altona? Eu achei que ela fosse uma conhecida sua.

— Não, ela veio lá da Austrália.

A informação captou a atenção de Alequis.

— Ela disse isso?

Seu pai agitou a cabeça em negação.

— Ela fala um português muito ruim, misericórdia. Não entendi nem dez por cento do que ela falou.

— Então como você sabe que ela é da Austrália?

O velho voltou a lidar com os pães, os ombros largos encolhidos.

— Só na Austrália as mulheres são altas desse jeito, filho.

A linha de raciocínio por trás da afirmação era duvidosa, mas Alequis preferiu se abster de comentários. Um pico de estresse se assomou no horizonte apenas em ouvir o nome da mulher. Ele não queria saber mais sobre ela.

Ou melhor...

— Ela pagou a conta?

— Ainda não.

Alequis arregalou os olhos.

— Você deixou ela sair sem pagar?!

— Abaixa essa voz — seu pai jogou um pano florido por cima do cesto abastecido, os movimentos suaves e gentis como se tratasse de um bebê no berço. — A moça estava com fome e sem dinheiro. Isso é muito triste. Tenta imaginar o que ela passou pra chegar nesse ponto.

— Independente disso — ele cruzou os braços. — Ela tinha que ter dito que não tinha dinheiro antes de comer tudo. Nada justifica.

Dona Nilza, apoiada no arco de entrada da padaria, fez outra intromissão não solicitada.

— Quando a fome aperta, a vergonha afrouxa. Ela nem deve ter pensado em dizer que não tinha dinheiro.

— Também acho — seu pai concordou. — A conta foi alta, mas, sinceramente, eu não faço tanta questão.

— Ficou doido? — Alequis confrontou. — Ela precisa pagar, pai. Você não pode relevar a atitude dela só porque seu coração é mole. A padaria vai falir de verdade se você resolver distribuir comida de graça.

Seu pai cruzou os braços e ergueu o queixo. A postura espelhou a própria de Alequis.

Merda de genes.

— Eu não sou você. Minha consciência é a base da minha opinião. Aquela moça estava com fome e precisando de ajuda. Se ela voltar pra pagar a conta, bem; se não voltar, amém. — Ele partiu para a cozinha a passos firmes. — Cuida do balcão, eu vou olhar o forno.

Alequis mastigou um palavrão ao observar a saída indignada do velho.

Nessa putaria toda, ele recebia uma lição de moral?

— Vou te contar, cara, eu vim pra esse mundo pra tomar no cu, só pode.

Dona Nilza estalou em risadinhas abafadas.

— Para de reclamar, seu insensível. Me vê aí meia dúzia de pão.
Alequis riscou outro dia do calendário. Por via das dúvidas, o fez de frente para o balcão, atento a entrada da padaria. A aparição de imbecis inconsequentes poderia ser uma nova constante na rotina de trabalho. Uma cortesia à altura de 2020.

A sina catastrófica desse ano era a única certeza da atualidade. A última semana de dezembro começaria manchada pelo sangue derramado em desastres naturais. O terremoto no Japão e o furacão nos Estados Unidos eram apenas dois registros na crescente lista de desgraças.

E quando a desgraça não era em nível global, haviam as pequenas coisas, como o esbarrão acidental de Alequis na gôndola de temperos. Os reflexos dele não foram rápidos o bastante para evitar a queda da leve estrutura. Pacotes de cominho, orégano e pimenta-do-reino foram enviados para todas as direções.

Absurdo, realmente absurdo, mas os olhos de Alequis encheram de lágrimas ao olhar a bagunça. Ele fungou, trincando os dentes. Jamais choraria por tão pouco, mesmo que, puta que pariu, tinha acabado de arrumar essa merda!

Por que tudo estava dando errado?

Antes não era assim.

Ele não era assim.

Um ano atrás, no 24 de dezembro de 2019, Alequis estava bem. O restaurante lhe deu folga e ele curtiu um dia de praia ao lado da namorada e amigos; à noite, se juntou aos pais para uma ceia de natal farta de comida e expectativas. 2020 seria seu último ano escolar e a abertura oficial para a vida adulta. O futuro era algo brilhante, cheio de possibilidades e sonhos a realizar.

Hoje, ele estava aqui, e nada mais fazia sentido.

— Bom dia.

A respiração dele engatou dentro do peito.

Não.

Não podia ser...

Ah, sim, era.

— Já é boa tarde.

Parada ao seu lado, sem a miníma explicação de quando chegou ali para começar, Mata sorriu. Outra vez, nenhuma máscara estava à vista para cobrir o rosto sardento.

O sangue de Alequis esquentou por esta audácia, contudo, foi pego na surpresa de assistir Mata erguer a gôndola do chão e, em silêncio, recolher os temperos espalhados.

Ele limpou a estúpida umidade presa nos cílios antes de se juntar à tarefa. Manteve o foco fixo na ação, esforçando-se ao máximo para ignorar a proximidade da mulher. Quando cada tempero encontrou o seu lugar de origem, Alequis correu para a segurança do balcão.

Ali, a distância bem definida tornou mais fácil encarar Mata e seu tamanho descomunal. Ela tentou se aproximar. Alequis brandiu um dedo em advertência.

A mulher ainda vestia a mesma roupa do dia anterior. Sem chances dela se debruçar no seu balcão desinfetado quando sequer tomou um banho.

— Você trouxe o dinheiro?

A expressão dela se iluminou. Enfiou uma das mãos na pochete — a coisa era mais monstruosa do que a memória recente de Alequis sugeriu — e retirou um punhado volumoso de notas que foi prontamente oferecido.

As sobrancelhas de Alequis subiram ao nível dos cabelos, cifrões literais deviam ter aparecido em seus olhos. É dinheiro pra caralho!

Animação vibrou através dele. Um sentimento macio demais para a morte brutal encontrada ao revirar o bolo de notas.

Pesos chilenos.

Todas as notas eram pesos chilenos.

Parte das cédulas, úmidas e manchadas por alguma coisa na qual Alequis não queria pensar, se desmanchou ao ser manuseada. Uma quantidade razoável apresentou estado de salvação e foram enfileiradas na lateral da bancada. Alequis jogou a soma do montante para a conversão no celular.

Cento e setenta e oito reais.

A veia na têmpora pulsou.

— Isso não cobre nem metade da sua conta — disse, entre dentes.

Mata, concentrada nas travessas de salgados durante a contagem do dinheiro, se virou para ele e emitiu um singelo:

— Oh.

Alequis respirou fundo. A maluca não levaria a melhor sobre ele por dois dias seguidos.

— Cadê o resto do pagamento? — perguntou, e o fato de tê-lo feito em uma entonação controlada era uma vitória pessoal.

— Não tenho — ela ergueu as mãos abertas como se para comprovar o vazio nelas. Então um indicador fino, coroado por uma unha curtíssima, apontou a travessa de enroladinhos de queijo. — Posso comer?

— Claro que não!

Os ombros dela despencaram em sinal de decepção; o traço risonho, porém, continuou a marcar presença nas curvas da sua boca.

O que seu pai viu nela para simpatizar? Além de golpista, era debochada!

— É melhor você caçar o seu rumo — em gestos bruscos, ele juntou as notas estragadas e as lançou na lixeira. — Não tem nada pra você aqui até quitar sua conta, ouviu? E nem adianta bancar a coitada pra cima de mim que eu não sou trouxa. Meu pai cai nessas besteiras, eu não. — Ele pegou o vidro de álcool em gel para higienizar as mãos após mexer com um dinheiro muito sujo. A força infundida no aperto passou um pouco da conta e o precioso álcool transbordou como um rio em sua palma. — Mas que merda!

Alequis usou a outra mão para aparar o excesso. Porra, o desperdício. Um aceno de cabeça convocou a aproximação de Mata.

— Rápido, passa aí — ele empurrou o álcool para ela, besuntando suas mãos juntas. — Que merda, que merda, que merda.

Uma risada suspirada transferiu o foco dele para cima, mais precisamente para o sorriso solar a enfeitar a expressão de Mata. Ela emitiu uma sequência de sons guturais e compassados — seu idioma nativo, talvez. Alequis não reconheceu a língua, porém o alvo da risada estava mais do que claro.

— Pronto — ele falou, dois passos atrás enquanto espalhava o restante do gel pelos braços; o cenho franzido para dar vazão a raiva. — Você já pode ir embora.

Mata também se afastou dois passos, o sorriso imperturbável.

— Muito divertido. Você. Alequis, não? Muito divertido.

Ela caminhou para a saída, um braço erguido em despedida.

— Da próxima vez que você vier é melhor trazer o resto do dinheiro! — ele disparou. — Dinheiro brasileiro!

Um último olhar para ele, seguido por uma piscadela brincalhona, e Mata desapareceu na esquina da loja.

— Maluca, totalmente maluca. — Ele guardou os pesos na caixa registradora. Agora teria que descobrir o endereço de alguma casa de câmbio. — Porra de mulher pra dar trabalho.
O toque de uma buzina de moto apitou na rua. Alequis colocou o notebook de lado, a redação semi-terminada, e alcançou o dinheiro à disposição na mesinha da sala.

— A pizza chegou — disse ao acaso.

Seu pai, estirado no sofá zapeando os canais da televisão, zumbiu em concordância.

A buzina apitou novamente e Alequis desceu as escadas para o primeiro andar gritando pedidos de paciência.

O jogo virou, porra! Ele era o cliente agora.

Sorrindo para si mesmo, pagou e pegou a encomenda. O cheiro de queijo e orégano um incentivo para subir as escadas de dois em dois degraus. O cansaço e as frustrações do dia esquecidos em prol daquela pequena satisfação.

Há séculos queria comer uma pizza.

— A gente devia ter pedido duas, pai — disse ao entrar na sala. — Eu quero comer essa aqui sozinho.

A brincadeira foi ignorada. As imagens na televisão absorveram a atenção do velho.

A reportagem exibiu filmagens de celular. Do alto de um prédio, pessoas gritaram em pânico ao verem o mar avançar muito além da faixa de areia e invadir as ruas costeiras, varrendo carros e pessoas. A chamada informativa correndo na parte inferior da tela falou sobre maremoto, tsunami e centenas de mortos e desaparecidos.

Alequis sentou ao lado do pai, depositando a caixa da pizza na mesa.

— Caraca, o Japão ficou arrasado mesmo, hein.

— Não é no Japão — seu pai comentou, aumentando o volume da TV. — É no Chile.







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